Dinheiro, não é professor?

Dinheiro, não é professor?

Desde que comecei a lecionar para acadêmicos de Direito, em 2012, mantive alguns hábitos semestre após semestre. Além do registro de certas memórias que servem como experiência de vida e aprendizado, tanto para o professor como para os alunos, procurei investigar despretensiosamente os desejos que jovens ou maduros discentes apresentam ao longo do curso. Mesmo que não tenha realizado isso por meio de um método, creio que a periodicidade e a insistência instintiva em alguns questionamentos e conversas possam ter produzido um resultado que auxilia na compreensão da sociedade brasileira.

E existem questões curiosas a serem analisadas no processo de maturidade adquirida com o tempo. Via de regra, alunos dos semestres iniciais são mais românticos nas impressões sobre o Direito. Já os alunos dos semestres intermediários mostram-se atônitos com a realidade jurídica que lhes espera, mas ainda respiram a entorpecedora “utopia” de um mundo melhor. No entanto, os que se encontram às vésperas da formatura usam antolhos para não se preocuparem com nada além de um “pragmatismo” que cuide de seu sustento. Resguardadas as exceções individuais, algumas peculiaridades das instituições de ensino ou até mesmo fatores regionais, o fato é que isso mostra-se comum em diferentes cursos de Direito.

Claro que nem todas as vivências da minha curta experiência docente, limitada geograficamente e institucionalmente, podem ser universalizadas. Presumir isso seria uma estupidez. Mas algumas conversas com outros docentes e a troca de informações com pessoas que frequentaram outros cursos de Direito, mostram que existe algo próximo do padrão descrito. Principalmente quanto ao romantismo típico do início do curso, seja com a busca por justiça ou entre os colegas.

Em conversas privadas, busco questionar os alunos por qual motivo profundo escolheram a formação em Direito. Enquanto alguns novatos, tensos pela possibilidade de fazer alguma afirmação que seu professor possa reprovar, não titubeiam em afirmar que desejam “fazer justiça” (uma declaração tão abstrata quanto desejar uma sociedade mais igualitária), os mais experimentados pelas agruras do curso fogem dessa pergunta como um gato que se esquiva da água. Assim, com o passar do tempo, passei a evitar esse tipo de indagação para os alunos dos semestres finais, afinal, isso se tornou um constrangimento desnecessário. Era quase um ato de tortura: em alguns casos minhas interrogações se assemelhavam ao machado de um carrasco. Tal silêncio foi ainda mais estimulado quando perguntei a uma formanda qual era a razão central de sua escolha pelo curso de Direito: “Dinheiro, né professor?”, ela disse. Ainda hoje não sei quem ficou mais constrangido com tamanha honestidade de “princípios”.

Existe algum mal em ter ambição econômica? Em hipótese alguma. Isso é algo legítimo, por vezes muito necessário, e faz parte da natureza humana em sociedades que florescem. Mas quando alguém justifica a escolha profissional com base no retorno financeiro, há a demonstração de duas misérias: a econômica e a moral. E a pior delas é a moral. Sem firmeza de bons propósitos, paixão pela atividade laboral e apreço racional por aquilo que lhe conduzirá até a velhice, a vida perde o sentido.

Sem romantismos. Na realidade mencionada, assim como em tantas outras, não se fala de alguém desesperado economicamente para superar uma miséria social familiar e que em razão disso, faria o que fosse possível para mudar tal realidade. O estado de necessidade dessa pessoa encontraria razoável defesa para sua justificativa. O ponto é outro: de alguém com razoáveis condições para poder escolher e fazer o que gosta com prazer, mas acaba escolhendo o dinheiro. Ou a promessa dele. Como Francis Bacon disse, “o dinheiro é um ótimo servo, mas um mau mestre”. Imagine quando esse mestre é a sua razão de viver.

Mas existe outra curiosidade que ainda preservo. Como leciono a disciplina de Introdução ao Direito, que é obrigatória para aqueles que desembarcam no curso, procuro saber dos calouros qual a futura atividade profissional que pretendem exercer. Como este curso tem muitas possibilidades, é natural que existam variadas escolhas. O que pude notar, invariavelmente, é que a cada 50 alunos, 45 querem o que habitualmente se chama de “concurso público”, ou seja, alguma carreira estatal em que o curso de Direito seja necessário ou braço acessório fundamental. E é na academia que reside o grande germe da “profissão” dos “concurseiros”. Em alguns cursos não seria exagero alguém dizer que o indivíduo, ao se formar, tem o diploma de bacharel em “concurseiros”, tamanho o grau de desvinculação do ensino superior com a ideia de formação cultural para mentes superiores, o que não se resume a marcar a resposta correta tal e qual ocorre em concursos públicos. Bem, mas e os outros cinco calouros? Em média, três desejam advogar ao se formarem. E os restantes? Com a sinceridade de uma criança, dizem que não sabem o que querem ou que estão ali porque os pais mandaram. O curioso é que nunca vi nenhum aluno afirmar que queria ser professor universitário…

Isso tudo escancara parte significativa de nossa cultura. Mesmo que de forma instintiva e sem grandes refinamentos na compreensão sobre quais mecanismos transferem o dinheiro dos cidadãos para o Estado, há no Brasil uma crença de que somos eternos credores de algo que não sabemos bem o que é. Assim como ocorre com boa parte das “carreiras” estatais, em que ninguém sabe bem ao certo o que se faz, mas desejam fazer no primeiro concurso que passarem, existe em nosso país a ideia de que qualquer coisa serve. Nada mais lapidar do que a frase de Frédéric Bastiat, presente no ensaio “O Estado”, escrito durante o revolucionário ano de 1848, na França: “O Estado é a grande entidade fictícia pela qual todos procuram viver à custa de todos os outros”.

Sem dúvidas essa “ideologia concurseira” não é algo que surge em razão de um valoroso espírito público ou de uma busca por justiça no sentido concreto. Na raiz, as elites que saíram da “Casa Grande e Senzala” e foram para “Sobrados e Mucambos”, duas brilhantes obras de Gilberto Freyre que retratam a saída do campo para a cidade no Brasil, descobriram que a formação de um novo Estado necessitava de um serviço público minimamente estruturado para seu funcionamento. E assim, nada mais “justo” que tais elites produzam membros para ocupar este vazio estatal. Depois vem a República e o contexto segue o mesmo. Assim, com uma base cultural e histórica firmemente alicerçadas, aliado a privilégios de classe que praticamente aposentam o indivíduo após seu estágio probatório, o estudante contemporâneo de Direito reproduz uma história cultural que ignora com vistas a defesa de seus interesses mais egoístas. Tais práticas sociais são verdadeiras pragas sistêmicas que devastam o país. Essa é a regra geral. Não falo de exceções.

É importante destacar que o pequeno relato acadêmico sobre a “ideologia concurseira” pode sofrer algumas alterações não tão significativas quanto mais avançada a turma se encontra no curso. Entre intermediários e formandos, aqueles alunos que são mais relapsos, em razão das dificuldades dos concursos públicos, acabam sendo conduzidos forçosamente a testes menos traumáticos como o exame da Ordem dos Advogados do Brasil e se inclinam a vida liberal por necessidade, mesmo que ainda alimentem a frágil esperança de que um dia terão seu lugar ao sol do Estado. Apesar disso, a ampla maioria segue firme nos propósitos “concurseiros”.

Não que isso seja um mal em si, mas essa obsessão pelo Estado mostra alguns dos sintomas de nossa cultura. Em primeiro lugar, existem dois grandes atrativos vinculados às carreiras jurídicas ou estatais no Brasil: significativos “salários” mesmo em atividades de menor complexidade; e estabilidade, sorrateiramente entendida como vitaliciedade, que por sua vez é debochadamente entendida como eternidade, e que por seu turno pode ser sarcasticamente compreendida como posteridade, afinal, com polpudos “vencimentos” até o final de suas vidas, há a possibilidade de salvaguardar a vida econômica das futuras gerações, perpetuando a família como herdeira desse sistema. Em segundo lugar, é possível relembrar das garantias, um nome fantasia para privilégios, que as classes estatais gozam em nosso país e do consequente status social imediatamente adquirido com a condição de aprovado em um concurso público. E uma terceira atração fatal encontra-se na desnecessária comprovação, por parte dos concorrentes, de uma vocação para as atividades escolhidas, ou melhor dizendo, de uma abnegação sacerdotal que busque prezar pela sociedade independentemente do que se recebe em troca. Sim! Ingênuo é aquele indivíduo que não desconfia que a maior parte dos aspirantes ao universo do Estado nos cursos de Direito são atraídos pelo poderio econômico e pelo orgulho de poder travestir-se de uma mínima autoridade que seja.

Na essência, isso é um mero reflexo da seita patrimonialista e do culto ao corporativismo, conceitos estruturais que dificultam a valorização de uma alta cultura que permita criticar frontalmente esse tipo de postura. Com a corrosão das entranhas morais do Estado pervertido por um sistema que reforça tais comportamentos, os cidadãos tendem a ver sua ascensão ao “serviço público” como a chegada ao Paraíso.  Com isso, a asfixiada sociedade brasileira tem dificuldades de empreender, seja pela ausência de estímulos ou pela incessante busca de tributos que possam manter o paquidérmico sistema estatal. Diante das instabilidades sociais e econômicas presentes na história do país, a insegura atividade liberal mostra-se demasiadamente frágil para que um indivíduo tente cravar firmemente suas estacas profissionais.

Com um encorajamento a uma mentalidade estatista em que só o Poder Judiciário até pouco tempo atrás (2016) consumiu cerca de 1,35% do Produto Interno Bruto (89% destes gastos foram com pagamento de pessoal), em que não faltam auxílios (moradia, alimentação, escola, saúde), em que para os magistrados e membros do Ministério Público existem dois meses de férias no ano e outras benesses que fazem com que haja uma diferença abissal entre as “rendas” dos intramuros do feudo estatal e dos servos (a ampla maioria da população brasileira), não é de se esperar coisa distinta da maior parte dos estudantes que almejam um lugar perto desse abstrato e filantropo Leviatã. Sem apreço a uma verdadeira liberdade e diante da manutenção de privilégios que formam castas, não existe florescimento humano.

No fundo, qualquer surpresa com esse desejo profissional entre acadêmicos de Direito significa um desconhecimento absurdo do Brasil. Em partes, a pergunta que ainda executo em sala de aula é um exercício fadado a confirmar uma impressão comum: a de que dificilmente algum estudante de Direito acredita que há uma boa vida fora do Estado. No limite, e sem nenhuma maldade ideológica, eles adaptam livremente a definição clássica de fascismo de Benito Mussolini e se imaginam todos dentro do Estado, ninguém contra o Estado, e nenhum fora do Estado.

Mesmo reconhecendo o exagero da aproximação feita, não se pode esquecer que é muito difícil encontrar no corpo discente ácidos e honestos alunos que repudiam as regalias habitualmente encontradas no amplo sistema de justiça pátrio. Na primeira oportunidade que podem, em seus estágios, não perdem tempo para gozar de certos direitos típicos de um soldato. Claro que os membros “concursados” e efetivos que participam dos órgãos, instituições e entidades de classe nunca fazem a genuflexão e aceitam o quanto seu pecado original de “benefícios” afeta a sociedade brasileira. Logo, o que povo chama de regalias ou privilégios, sempre é renomeado para garantias e inserido dentro de um rosário exagerado de justificativas que, se pudessem, alegariam reposições salariais da época do Descobrimento a gratificações que remontariam aos primeiros anos da extração do pau-brasil. Mesmo com estas “perdas salariais”, a realidade econômica que envolve aqueles que “servem” o Estado no sistema de Justiça é pornograficamente superior a da renda média do brasileiro.

Como um ato de fé interesseiro e direcionado a deuses corruptíveis, ainda abundam acadêmicos em rituais preparatórios para o ingresso na comunidade estatal. Embora exista um horizonte de escassez de concursos públicos, esta realidade ainda não faz cócegas na mentalidade estatal acadêmica. Natural que sejam raras as críticas destas “garantias” por parte dos alunos. Todos sonham em fazer parte da morada dos deuses. É a grande vocação da sociedade brasileira, dinheiro do Estado, não é professor?

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João L. Roschildt

João L. Roschildt

Professor do curso de Direito do Centro Universitário da Região da Campanha (Urcamp). Além de articulista e ensaísta, é autor de “A grama era verde”. Site: www.joaoroschildt.com.br

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