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Gaviões da Fiel, Expressão Artística e o Sentimento Religioso

Não é a primeira vez (e não deve ser a última), que escrevo sobre os limites da liberdade de expressão e da liberdade artística, especialmente quando em choque com a liberdade religiosa. Na obra conjunta com Jean Regina, “Direito Religioso: questões práticas e teóricas”, escrevemos sobre o grande limite da liberdade de expressão, qual seja: a dignidade da pessoa humana!

Com este cenário surgiu uma grande pergunta, que juristas, filósofos e intelectuais estão tentando responder: “Em razão da liberdade de expressão posso falar e fazer qualquer coisa?”. Entendemos que não, e, aqui, damos nossa módica contribuição a este debate. A liberdade de expressão encontra um limite: dignidade da pessoa humana (VIEIRA; REGINA: 2018, p. 97).

Mas por que o limite é a dignidade da pessoa humana? Todos os direitos, garantias e liberdades decorrem da dignidade da pessoa humana, sem a qual tudo passa a ser relativo e o que importa é o prazer do momento e sua utilidade (ou não) para determinados desígnios. Entretanto, quando entronizamos a dignidade da pessoa humana no centro das relações sociais, irradiam dela os direitos concretos e particulares de cada um, assegurando suas liberdades, como muito bem ensina Javier Hervada[1].

Brilhantemente, o Papa Bento XVI esclarece que a liberdade religiosa é o ápice das liberdades fundamentais, sendo o papel de tornassol, ou seja, o indicador da eficácia ou não dos demais direitos humanos. Por outro lado, quando a liberdade religiosa é negada, prejudicada ou atacada, a ofensa é direta à dignidade humana, ameaçando simultaneamente a própria justiça e a paz, e, ainda, minando todos os demais direitos humanos e liberdades. A história está aí para contar.

É elemento imprescindível de um Estado de direito; não pode ser negada, sem ao mesmo tempo minar todos os direitos e as liberdades fundamentais, pois é a sua síntese e ápice. É «o papel de tornassol para verificar o respeito de todos os outros direitos humanos». Ao mesmo tempo que favorece o exercício das faculdades humanas mais específicas, cria as premissas necessárias para a realização de um desenvolvimento integral, que diz respeito unitariamente à totalidade da pessoa em cada uma das suas dimensões.

Entre os direitos e as liberdades fundamentais radicados na dignidade da pessoa, a liberdade religiosa goza de um estatuto especial. Quando se reconhece a liberdade religiosa, a dignidade da pessoa humana é respeitada na sua raiz e reforça-se a índole e as instituições dos povos. Pelo contrário, quando a liberdade religiosa é negada, quando se tenta impedir de professar a própria religião ou a própria fé e de viver de acordo com elas, ofende-se a dignidade humana e, simultaneamente, acabam ameaçadas a justiça e a paz, que se apoiam sobre a reta ordem social construída à luz da Suma Verdade e do Sumo Bem. Neste sentido, a liberdade religiosa é também uma aquisição de civilização política e jurídica[2].

Portanto a defesa da liberdade religiosa é, antes de mais nada, defesa da dignidade da pessoa humana e de todos os demais direitos humanos e liberdades que dela irradiam. Sem dignidade, perdemos nossa qualificação como humanos, tornamo-nos objetos, res (coisa).

É dever do Estado rechaçar qualquer ataque, por menor que seja, a dignidade da pessoa humana. O Estado verdadeiramente existe para impedir a barbárie e o império da lei do mais forte. A unidade política deve garantir que todos os membros da comunidade vivam com dignidade e tenham suas liberdades garantidas e protegidas, sobretudo a religiosa, pedra de toque das demais.

Qualquer liberdade que atente contra a nossa dignidade, aqui perdeu sua condição de existência, em outras palavras, deixou de ser liberdade para se tornar outra coisa: um ato ilícito, criminal ou civil, dependendo das circunstâncias de como foi perpetrado. De tal modo, a liberdade de expressão encontra limite na dignidade do homem e, quando uma expressão artística ofende objetivamente milhões de brasileiros, o Estado deve intervir. Ensinava Lutero (Da Autoridade Secular) que o Domínio Temporal deve combater os acristãos e mantê-los cordatos contra sua própria vontade:

Visto que todo mundo é mau e entre mil é difícil encontrar um único verdadeiro cristão, um devoraria o outro, de maneira que ninguém estaria em condições de ter mulher e filhos, trabalhar pelo sustento e servir a Deus, o mundo seria devastado. Por isso Deus instituiu os dois domínios, o espiritual que cria cristãos e pessoas justas através do Espírito Santo, e o temporal que combate os acristãos e maus, para que mantenham paz externa e tenham que ser cordatos contra a sua vontade. (LUTERO: 1996, p. 79).

A comoção social do dia é a humilhação e morte de Jesus pelo diabo, em plena avenida, para milhões de espectadores verem. Há quem diga que o personagem ali retratado não era Jesus, outros apontaram para o fato do ator ter se levantado do chão após a encenação retratando sua vitória[3], o fato é que a comoção nacional aconteceu e o sentimento religioso de milhões de brasileiros agredido, variando o nível de acordo com a intimidade de cada um. Em caso de ofensa comprovada temos um ato ilícito, que pode ser criminoso ou se limitar à esfera civil, gerando o dever de indenizar. De qualquer maneira, exige-se a tutela do Estado e medidas de punição e coerção (para evitar que se repita) são esperadas contra todo aquele que pratica uma ofensa, quer seja na esfera criminal e ou cível. Este é o império da lei em um Estado de Direito.

Por fim, lembro que estas palavras têm como paleta de cor a manutenção da dignidade da pessoa humana e sua defesa. Hoje vivemos ataques simbólicos a nossa fé por meio de movimentos orquestrados (ou não), sob o manto de uma falsa liberdade de expressão, e amanhã, qual será o próximo nível? Quais serão os próximos ataques? Quando passaremos de violência simbólica para real?

Ainda, convido-os para não “espiritualizar” no espaço público no sentido de tentar encontrar motivos para relevar ou minimizar o ocorrido sob o manto do amor, acolhimento, costume, etc; mas a defender nossa crença e, sobretudo, a liberdade de fazê-lo. A espada do Estado está aí para ser desembainhada e momentos como este que o gládio temporal precisa desempenhar seu papel. Aos teólogos, pastores e demais líderes religiosos, ao meu ver, compete juntar os “cacos” da dignidade daqueles que tiveram seu coração ferido (caso eles próprios assim não se sentirem, seja pela força, necessária que precisam ter para cuidar do rebanho, seja pela dureza de coração, seja por puro liberalismo teológico mesmo).

 

Referências:

[1] HERVADA, Javier. Los Eclesiasticitas ante un espectador – tempvs otii secvdvm. España: Navarra Gráfica Ediciones, 2002

[2] Bento XVI. Liberdade Religiosa, Caminho da Paz. Mensagens. Disponível em : http://w2.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/messages/peace/documents/hf_ben-xvi_mes_20101208_xliv-world-day-peace.html Acesso em 07.03.2019.

[3] Considerando que a cena continua, após a morte de Jesus, o ator simplesmente se levanta estende os braços e retorna às linhas atrás dos demais coreógrafos para reiniciar a coreografia em looping, como é de costume em desfiles de avenida. O fato é que a ênfase da cena se dá na morte de Jesus, este foi o sentimento de milhões de pessoas que se sentiram ofendidas, como se pode facilmente perceber nas redes sociais.

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As posições expressas em artigos por nossos colunistas, revelam, a priori, as suas próprias crenças e opiniões; e não necessariamente as opiniões e crenças do Burke Instituto Conservador. Para conhecer as nossas opiniões se atente aos editoriais e vídeos institucionais

Thiago Rafael Vieira

Thiago Rafael Vieira

Graduado pela Universidade Luterana do Brasil - ULBRA (2004), advogado, membro da OAB/RS, inscrito sob o n.º 58.257 (2004), OAB/SC sob o n.º 38.669-A e da OAB/PR sob o n.º 71.141; especialista em Direito do Estado, com ênfase em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS (2006). Pós-graduado em Estado Constitucional e Liberdade Religiosa pela Universidade Mackenzie, pela Universidade de Oxford (Regent’s Park College) e pela Universidade de Coimbra (2017). Professor visitante da ULBRA e de cursos jurídicos, tem atuado preponderantemente na área de Direito Religioso e Empresarial, tanto na área consultiva, como no contencioso e assessoria a organizações religiosas e empresas. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Religião - IBDR; Vice-presidente do Instituto Cultural e Artístico Filadélfia – ICAF; foi membro do Conselho Diretivo Nacional da ANAJURE, nos cargos de Diretor Jurídico e posteriormente de Diretor para Assuntos Denominacionais até 11/2018. Co-autor com Jean M. Regina da obra “Direito Religioso: questões práticas e teóricas. Porto Alegre: Editora Concórdia, 2018.

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