Imagem: Reprodução

– Marx + Tião Carreiro

Observações indispensáveis antes de ler este texto:

1-   Colocar um fone de ouvido (caso não tenha, não tem problema), ajuste o volume para que ele fique apenas como um som de fundo (20% no volume é suficiente).

2 – Apertar o “Play” no vídeo abaixo.

3 – Se tiver uma cerveja gelada guardada, abre-a e tome-a enquanto lê o ensaio.

Vamos lá.

 

Meu caráter vem da roça:

Gosto de analisar a sociedade tendo em mente o que vivi em minha própria vida, creio que agindo assim eu elevo o texto ao patamar do ensaio; e do patamar do ensaio, elevo o escrito ao nível da realidade, do fato e da experiência vivida. Tudo aquilo que pude fatidicamente experenciar de épocas passadas, em lugares que, não raro, se mantiveram no formol das tradições; lugares esses que se negam a evoluir porque o custo do progresso, por vezes, é a perda das suas essências e costumes. Tudo aquilo que experimentei nesses recantos eu tento conservar em minha memória; uma das principais lições de Russell Kirk é que a experiência histórica é a pedagoga do caráter.

Eu realmente não tenho do que reclamar, tive uma infância sensacional, algo que eu lembro com lágrimas nos olhos e com uma alegria incontida. Cresci boa parte da minha infância em São Bento do Sapucaí, cidade minúscula, majoritariamente rural, o último pedaço de São Paulo antes de se render a Minas Gerais — não raro os são-bentistas se consideram (ou são chamados) mineiros; seus trejeitos e gostos são idênticos, de fato.

 

Seja urgentemente livre, porém nunca deixe as regras:

Afirmava-se naturalmente dois mandamentos nesse local: sejam livres, vão ordenhar vacas, montar cavalos, jogar futebol, sujar na lama, infernizar velhos e velhas, e, é claro, comer frutas no pé; graças a Deus não existiam smartphones naquela época, e os poucos telefones móveis que encontrávamos, se deparavam com a barreira do inexistente sinal — no bairro do Cantagalo (São Bento do Sapucaí), onde passava as minhas longas férias, não pegava sinal algum de operadora alguma. Um recanto vivo de uma realidade quase paradisíaca para os dias atuais, um tempo que se conservara virgem e simples.

A segunda regra do bairro era a percepção de que existem padrões preexistente a nós, padrões que não estão abertos a negociações e nem diplomacias; esses padrões, para o bem ou para o mal, são padrões religiosos ou derivados da religião. A isto academicamente chamaríamos de percepção moral. Existiam roupas certas para ir às celebrações, além de uma maneira correta de se portar nelas, rezar o terço era um evento no centro do bairro, as festas eram folias dos santos. O sacro era o sol de um sistema comunitário tão primitivo quanto belo. As procissões, meu caros, eram as coisas mais assustadoramente comuns e sobrenaturais que vivi em minha infância; velas gigantescas e de todas as cores, estandartes com imagens de santos de um primor de realezas, cruzes de madeiras entalhadas e de ferros fundidos, terços de todos os jeitos, imagens altaneiras, cantos entoados numa só voz. Um evento que acumulava pecadores públicos e santas moralistas, todos do bairro participavam e rezavam. O céu vibrava e o inferno tremia; tudo isso em uma cidade de 10.468 habitantes, num bairro que sequer havia 150 pessoas.

Existem, então, três hastes básicas que derivam dessas duas regras expostas acima — ser livre e percepção moral. A diferença básica entre as regras acima impostas e as hastes de sustentação ética que agora vou expor, é que as primeiras regras não precisam dos nossos alvarás, elas são o que são e ponto, ser livre é um requisito rotineiro e incessante de nosso ser, assim como a busca de propósitos e limites são condições para sermos mais que meras ilhas na sociedade; as hastes, por sua vez, são exercícios de hombridade e capacidade de ação, geralmente são ensinadas pela sabedoria do tempo, da família ou da fé.

Tais hastes, creio ser as únicas coisas que podem trazer alívio e restauração para a dita “geração milenium”, a geração que prefiro denominar de “fofos e mortais”. Ou seja, geração que se preocupa grandemente com a humanidade, mas ignora o feto; que quer acabar com a fome na África, mas que vira o rosto para o mendigo na rua; que quer consertar injustiças sociais, mas sequer lava a louça em casa; quer diálogo, mas chama a tia Neusa — entusiasta do Bolsonaro — de nazista; enfim, a geração que abraça árvores, fala com samambaias e chora por ovos de tartarugas, mas que considera o aborto uma questão humanitária… “fofos e mortais”, como eu disse.

 

As verdades do sagrado:

As três hastes incutidas em mim, na roça, em São Bento do Sapucaí, foram as seguintes:

1- Apreço pelo sagrado e pelos costumes; aprendi desde a mais tenra idade que eu fazia parte de um todo cultural que me sobreponha e fazia com que todos ao meu redor apreciassem o mistério do sagrado. Aprendi, com isso, a paradoxalidade da religião cristã ao tratar a Cristo como pai e irmão, ao mesmo tempo que se mantinha em uma distância reverente e temerosa diante de YHWH.

Aprendi, em suma, que estava inserido numa cultura cujos os costumes forjavam princípios morais e ações éticas. A religião cristã me ensinou a respeitar costumes e extrair deles o seu sulco de ética e moralidade; unido à reverência ao sagrado, veio a percepção de que havia uma ordem natural no mundo e que ela se aplicava ao Pedro de 8 anos, mas também ao mais velho ancião do bairro. Havia uma moralidade fincada no vergalhão da universalidade, e ela se fazia tão visível quanto tangível a mim, seja pelo horror da imagem do inferno pregada na capela do bairro, seja pelas pancadas do chinelo moralizador de minha mãe. A moralidade cristã, em minha infância, era tudo menos abstrata.

Tatuado em minha alma está clara a existência de uma regra comum que deriva de uma noção de sagrado, e isto, a mim, era tão certo quanto o sol; a religião me salvou da tirania do relativismo e da presunção egocentrista. Há verdades morais, e isso não é relativo.

 

Ué, não sou eu o centro do universo?

A segunda haste era — derivada da primeira — que o mundo não se encerra em meu ego, e por isso a noção do espaço entre o meu querer e o querer da turba, dos amigos, e das regras, fizera com que eu entendesse que o meu querer não era a régua da existência.

Com uns 7 anos de idade, no mesmo bairro do Cantagalo, a caminho do centro do bairro, escuto uma boiada sendo transportada de um pasto ao outro; e advinha quem estava no caminho entre os pastos e a boiada? Eu mesmo, seus videntes.

Nunca corri tanto em minha vida — e pela minha vida — ambos os lados do caminho eram cercados por arames farpados. Parecia que eu ganhava mais velocidade através do poder divino das orações de desespero que sem cessar tomavam minha mente também desesperada — mais tarde descobri que isso se chama adrenalina; todavia, acho mais romântico acreditar que foi Deus, e é isso que contarei aos meus filhos.

Não aguentando mais, tomei coragem e pulei do jeito que pude em meio aos arames farpados. Me cortei todo. Cheguei em casa sangrando e raivoso; meu avô me viu ao longe, chorando, machucado e com as roupas “estrupiadas”. É bom notar que meu avô não era nenhum poeta ou erudito, muito menos filósofo, e menos ainda um homem sentimental. Contei a ele o meu feito e minha destreza, tudo sob lágrimas e soluços covardes. Meu avô só me disse o seguinte: “Essa não era a sua calça de ir à missa? Tá rasgada, como você vai à missa agora”? Aprendi alí que a calça de ir à missa era mais importante que meu choro e lamúrias; que havia um sagrado ciumento que não abria mão de que usássemos a melhor roupa em seu banquete.

Pensava comigo: “mas eu poderia ter morrido e meu avô nem ligou para isso”. Isso não importa, o fato é que eu não morri, a vida continuou, o sol nasceu de novo e Fernando Henrique continuava viajando o mundo sob o nosso patrocínio. E o mais importante, é claro: “mais tarde tem missa, vá tomar banho e pare de chorar” disse o meu afetuoso avô.

Unindo à paradoxalidade da religião, meu avô foi a pessoa que eu mais amei em minha vida; justamente porque eu percebi que o seu ato de amor estava em me educar para a vida, e ser duro, por vezes, é o necessário para a formação de um caráter forte para um mundo igualmente duro. Ele me fez perceber que, apesar da minha forma esférica, o mundo não girava ao meu redor, e que — é bom sempre lembrar — “tem missa mais tarde”.

 

As condições para a liberdade:

Por fim, temos a responsabilidade de sermos livres; eu era livre para ir e vir, para cometer pequenas infrações ou não. Meus avós sabiam que a honra de um homem não se faz somente “torcendo o chuchu”, mas também dando a liberdade para que pudéssemos escolher entre as possibilidades que se apresentariam no cotidiano, e por ventura arcar com as consequências benéficas ou maléficas das nossas escolhas. Por isso, ao mesmo tempo que a moral se fazia presente, nunca me foi negado a possibilidade de me aventurar entre as matas, cachoeiras e campos de São bento. Sabiam os meus bons e velhos avós. que poucas coisas educam mais do que o caminho errado; que às vezes são pouquíssimas as chances de nos sentirmos verdadeiramente livres para escolher e colher a benesses de nossas predileções.

Por isso eu fui um garoto livre, que aprendeu a arte da vida simples e tenra, que tocou a teta da vaca para tirar o leite, que nunca achou que o leite veio da caixinha. Um menino que andou a cavalo até doer a bunda, que jogou futebol, mexeu na terra, que correu, se escondeu, que foi livre para ser criança em seu nível mais profundo.

Eu pisei descalço na terra molhada, você já sentiu isso? Você sabe qual a sensação de tocar com a sola do pé no orvalho gelado da manhã? Eu sei, eu vivi isso. Eu tive a liberdade real, a liberdade que não vem num vácuo amoral e utópico. A minha liberdade não era fazer tudo o que eu quisesse, era fazer o que eu quisesse após as ponderações religiosas, éticas e, acreditem, havia uma época que até as crianças tinham consciência moral.

Minha liberdade não estava no vazio, no limbo anacrônico de um liberalismo adolescente e tolo que muitos apregoam; a liberdade, querendo você ou não, era mais uma perna do tripé da vida, que se compõe também com as vigas do sagrado e da moralidade.

 

Fico por aqui:

A geração Y perdeu o significado do sagrado, e como disse Raymond Aron: as ideologias, vontades e egos se apossaram do trono de Deus; querem eles a primeira chance de fabricarem com os seus brincos, correntes e vergonhas, um deus fraco, tosco e, não raro, tirânico.

A geração Y aprendeu que não há nada que se sobreponha ao seu ego, é uma geração melindrada em si mesma, afogada em seu próprio vazio. Estava certo Valter Hugo Mãe quando disse em O filho de mil homens: “para dentro do homem, o homem caía”. Para dentro de si o homem cai, achando que fora dele só ele é.

Esta é, pois, a geração fofa e mortal que constrói seus próprios conceitos de liberdade transloucados, conceitos que se resumem em chamar a escravidão do relativismo de verdade última da liberdade. Quão livre o homem é se ele sequer conhece os limites da sua existência, as regras do jogo? A claustrofobia pode acontecer numa cela de 5m² ou no espaço, solto, entre astros e poeiras cósmicas; no fundo, não é o espaço ou a sua limitação que causa o medo psicológico, é a falta de propósito. A mesma doença que aflige os moralistas, aflige também os relativistas, ambos defendem e amam aquilo que não possuem.

O moralista ama tanto a ordem que faz da regra um dogma catequético e ditatorial, uma pílula matinal de cicuta; os relativistas defendem tanto a liberdade sem paredes, que sequer conseguem afirmar que as suas visões são corretas sem que as suas próprias mentes os censurem dizendo: “mas o certo é relativo”.

Eu fui salvo de mim mesmo, e da perniciosidade da filosofia progressista corrente em meu tempo, porque eu tive três alqueires e duas vacas — ou três hastes e duas regras. Lá no interior de São Paulo, onde meu caráter não fora formado por intelectuais da pedagogia francesa, em laboratórios de sociólogos ou nas tendas mal-acabadas do marxismo escolar, eu pude ser sadiamente uma criança livre e consciente; cresci escutando Tião Carreiro e Pardinho e não a Pedagogia do oprimido, isso foi o que colocou as bases do que eu sou hoje. E, sinceramente, alguém em sã consciência duvida de que Tião carreiro foi mais importante que Marx?

Meu caráter (ainda em construção, em reformas constantes e, não dificilmente, embargada por defeitos diversos) foi formado à sombra de uma amoreira, escutando ao longe o sino da Igreja que anunciava que “mais tarde tem missa”.

Texto em memória de meu querido avô, Otávio Claudiano Alves (1931 – 2001).

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As posições expressas em artigos por nossos colunistas, revelam, a priori, as suas próprias crenças e opiniões; e não necessariamente as opiniões e crenças do Burke Instituto Conservador. Para conhecer as nossas opiniões se atente aos editoriais e vídeos institucionais

Pedro Henrique Alves

Pedro Henrique Alves

Filósofo, colunista do Instituto Liberal, colaborador do Jornal Gazeta do Povo, ensaísta e editor chefe do acervo de artigos do Burke Instituto Conservador.

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