Monarquia, tradicionalismo e conservadorismo

“Tradicionalista, en sentido propio, pero amplio, no es el que quiere revivir el pasado, sino el que, una vez quebrada la tradición, quiere recuperar los principios que la inspiraban y la experiencia acumulada a su calor, para darles renovada vitalidad a tenor de las circunstancias presentes.” [1]

O meu colega de tribuna Rafael Valladão, honrado como eu em dispor de uma coluna no site do Burke Instituto Conservador, publicou um curioso artigo, no último dia 11 de março, sobre a questão da monarquia, sintomaticamente intitulado “Por que o neomonarquismo é reacionário”. [2] Bem que eu queria ter lhe respondido antes, mas afazeres vários não o permitiram. Conto, pois, com a complacência do meu editor, Pedro Henrique Alves, e do próprio Rafael.

Responder ao meu colega – sem dúvida de algum embasamento intelectual, mas de uma afoiteza algo infantil – me dará a oportunidade de tratar fundamentalmente de algumas questões espinhosas, e mesmo embaraçosas, à chamada “nova direita” – que, por si só, já deu tanto o que falar [3] –, cuja situação de comodidade parece estar chegando ao fim. Mais à frente ficará claro a que “comodidade” me refiro.

Traço “reacionário” do “neomonarquismo”:

Convém, antes de tudo, considerar que a minha condição de monarquista militante me confere uma visão de conjunto, interna e externamente, do movimento monárquico; chanceler do Círculo Monárquico de São Luís, mantenho, o que constitui motivo de honra para mim, relações cordialíssimas com numerosos monarquistas, veteranos e de primeira viagem, e com a própria Casa Imperial do Brasil, cuja dignidade sempre encontrará em mim um ardoroso defensor. É nesta condição, de monarquista dedicado à vida pública, inobstante a minha insignificância, que respondo ao meu colega de tribuna.

Comecemos do início: a pretexto de demonstrar o “caráter reacionário do projeto neomonarquista”, e após um longo preâmbulo sobre a importância do “neomonarquismo” – expressão inócua – para o resgate de nossa história, o articulista, sem meias palavras, parte para o ataque: “seduzidos em demasia pela representação luminosa do Império, hipnotizados pela figura majestosa e deificada dos imperadores, muitos conservadores caíram no conto da restauração da monarquia. Antes voltado à recuperação histórica do Império, o movimento neomonarquista passou a reivindicar a substituição do regime republicano pela monarquia dos Orleans e Bragança. Essa reivindicação pode ser caracterizada como reacionária, no sentido de recusar o presente em nome do passado mitificado.”.

Sinceramente, com todo o respeito que o nosso ilustre articulista merece, não sei de onde tirou a impressão – pois deve ser tão somente isto, uma impressão – segundo a qual os monarquistas seriam “hipnotizados pela figura majestosa e deificada dos imperadores” ou, então, estaríamos nós dispostos a “recusar o presente em nome do passado mitificado”.

Certamente que falta ao meu colega o conhecimento intramuros do movimento monárquico. Não foi senão entre os monarquistas que escutei, para ficarmos apenas no campo das amenidades, as mais duras restrições aos nossos “imperadores”: Dom Pedro I, [4] o príncipe de temperamento arrebatado, dividido entre o pendor ao Antigo Regime e a mentalidade liberal, protagonista de nossa emancipação política e se revelando, ao fim e ao cabo, incapaz de governar; Dom Pedro II, [5] o monarca racionalista, de cultura vastíssima mas estéril, alquebrado pela idade, desconfiado da própria instituição régia, “republicano”, “liberal”, “maçonizante”, inimigo do catolicismo ultramontano, verdugo de D. Vital, indulgente com os inimigos da Coroa e da Igreja.

Tudo isto, escutei-o nos ambientes monarquistas, dito a quem quisesse ouvir. Não somente, no entanto. Também muito escutei das virtudes, inúmeras e variadas, dos nossos dois Imperadores – Dom Pedro I, o estadista de têmpera inflexível, decisivo no momento decisivo, de grande capacidade de trabalho, apto a defender os reais interesses do país, coração generoso, brasileiríssimo; Dom Pedro II, o modelo de monarca ilustrado, de infatigável zelo pela coisa pública, intolerante a qualquer desvio de conduta, espírito elevado, enojado da instituição servil (assim como o pai) e da política miúda de botequim, mecenas de numerosos artistas e homens de letras.

Se por “reacionário”, portanto, o meu bom colega de tribuna entende aquele que descrê do progresso político ou civilizacional mercê da liberdade humana, e se propõe a impingir aos monarquistas essa vã ilusão, engana-se redonda e completamente. Desde, pelo menos, fins da década de 1920, com a fundação da Ação Imperial Patrianovista Brasileira, entidade liderada pelos notáveis professores Arlindo Veiga dos Santos [6] e Sebastião Pagano, [7] os monarquistas procedem a uma revisão crítica – quer os de feição “ultramontana”, quer os de feição “liberal”, a exemplo do grande historiador João Camilo de Oliveira Torres – do Primeiro e do Segundo Reinados, da Regência e do modelo sui generis de parlamentarismo monárquico que desenvolvemos entre 1840 e 1889.

Mecanismo interno das instituições monárquicas:

Mais adiante, passando ao mecanismo interno das instituições monárquicas tal como hodiernamente são concebidas e praticadas, [8] o discurso pedante e triunfalista – de par com manifesta e leviana má vontade – persiste nas inventivas do nobre articulista: “Os argumentos pró-monarquia são conhecidos e podem ser facilmente refutados em um único parágrafo. (..): a monarquia garante a estabilidade político-administrativa; (…) os parlamentares (…) não dispõem das regalias do presidencialismo; os países com maiores níveis de evolução socioeconômica são monarquias (…). O primeiro argumento afirma que a prerrogativa do Poder Moderador autoriza o rei a dissolver o Congresso e convocar novas eleições em caso de crise, mas ignora que a ferramenta pode ser facilmente pervertida para proteger interesses poderosos que conquistem o apoio do monarca. O segundo e o terceiro contam meias-verdades. Todos os privilégios do estamento burocrático não resultam da República, mas da cultura patrimonialista presente nas classes dirigentes desde a Colônia; (…) as relações entre desenvolvimento socioeconômico e sistema de governo não são rígidas de modo a haver mais prosperidade e paz aonde houver reis, e a prova empírica disso é haver monarquias atrasadas (Bahrein, Camboja e Kuwait) e repúblicas desenvolvidas (EUA, Coreia do Sul, Polônia, Alemanha, etc.). O discurso neomonarquista se baseia em premissas pouco plausíveis. Ele supõe haver vantagens imanentes ao regime monárquico, tais como a estabilidade de governo e a exemplar moralidade dos políticos. Não é razoável pensar que a substituição da República pelo Império tornaria os políticos em estadistas impecáveis. É ainda necessário muito boa-fé (e ingenuidade) para crer nas virtudes inerentes à família imperial, como se o sangue dos Orleans e Bragança contivesse alguma substância ética naturalmente diferenciada dos mortais súditos. Mesmo a interessante cisão entre governo e Estado, propiciada pelo parlamentarismo, não é exclusiva da monarquia, pois há países em que o presidente eleito deve indicar um chefe de governo, demissível em caso de crise, como acontece na França de Emmanuel Macron. Nesse caso, a eleição periódica do chefe de Estado garante legitimidade democrática ao presidente, diferentemente do monarca cuja liderança é imposta aos cidadãos pelo bizantino direito de sucessão dinástica.”.

Se tivesse lido o “catecismo” [9] do meu querido mestre e amigo Armando Alexandre dos Santos, grande escritor e professor paulista, residente em Piracicaba, o meu afoito colega não teria passado o vexame que passou. Vejamos o que nos diz o dr. Armando sobre o legítimo receio de o Imperador se portar de modo prejudicial em suas funções: “Um rei pode, sem dúvida, ter instintos dominadores (…) e deixar-se controlar por aproveitadores. Essas são tentações que podem assaltar qualquer governante; um presidente da república também está no caso. Só que, de si, o monarca tem mais condições do que o presidente para resistir a essas tentações. O presidente, não tendo hábito do comando supremo da nação (…), é mais facilmente levado a abusar da autoridade. (…). Por outro lado, o presidente precisou de apoios de toda ordem para subir ao seu ambicionado posto. Por mais personalidade e por mais honestidade que tenha, sempre deverá favores e precisará recompensar os áulicos que o cercam. Ele nunca será de todo independente.”. [10]

Já nem precisaria responder a bobagens do tipo “o discurso neomonarquista (…) supõe haver vantagens imanentes ao regime monárquico”, ou comentar sobre a suposta ideia geral dos monarquistas de que “a substituição da República pelo Império tornaria os políticos em estadistas impecáveis”, ou ainda me ocupar com mentalidade claramente igualitária [11] do jovem Rafael Valladão quando diz que “é ainda necessário muito boa-fé (e ingenuidade) para crer nas virtudes inerentes à família imperial, como se o sangue dos Orleans e Bragança contivesse alguma substância ética naturalmente diferenciada dos mortais súditos” e “a eleição periódica do chefe de Estado garante legitimidade democrática ao presidente, diferentemente do monarca cuja liderança é imposta aos cidadãos pelo bizantino direito de sucessão dinástica”.

Tais e tantos são os absurdos contidos em tão poucas linhas, tão evidente e lógico se apresenta a qualquer homem de estudo minimamente sério que qualquer forma de governo, por mais sofisticada e eficiente que seja, jamais será a fórmula mágica da resolução de todos os problemas entre o céu a terra. No que toca ao direito dinástico, os privilégios de que está tradicionalmente revestida a Realeza têm como função precípua – no que é, neste caso, algo conforme à mais estrita justiça – contrabalançar os graves deveres e obrigações de sua missão histórica, razão pela qual atentar para uma suposta crença, entre os monarquistas, de que “o sangue dos Orleans e Bragança” contém “alguma substância ética naturalmente diferenciada dos mortais súditos” não passa de uma difamação ridícula partindo de um igualitário tardio. Já quanto à “legitimidade democrática” de que estaria investida “a eleição periódica do chefe de Estado”, remeto esse mancebo bobalhão ao exemplo paradigmático das monarquias atuais, cujo alcance democrático e popular ninguém põe em xeque.

 

Tradicionalismo político:

O meu colega de tribuna não é, por certo, um troca-tintas qualquer; o seu conhecimento e maturação de importante bibliografia liberal e conservadora é patente, o que nos permite um diálogo minimamente proveitoso.

O seu desconhecimento, em contrapartida, não somente da parte mais substanciosa da vasta literatura referente a um outro ideário político, senão também, por assim dizer, da própria existência legítima desse ideário político, é patente tanto quanto. De que ideário estou falando? Do tradicionalismo político, naturalmente – de que o representante mais notável, de obra mais robusta, em atividade é, sem dúvida alguma, o jurisconsulto e filósofo espanhol Miguel Ayuso Torres, catedrático de Ciência Política e Direito Constitucional da Universidade Pontifícia Comillas (de Madrid), editor da histórica revista Verbo [12] e ex-presidente da União Internacional de Juristas Católicos. [13]

O nosso bom articulista, fustigador do “neomonarquismo”, defende a tese por excelência de liberais racionalistas, liberais moderados e conservadores de raiz anglo-americana, qual seja, a de que o tradicionalismo – chamado pejorativamente de “ultramontanismo” – é, em essência, reacionário [14] – no sentido de contrário ao natural progresso humano e social – e retrógrado. Em suas próprias palavras (vale a pena, uma vez mais, a longa citação, com o perdão dos leitores): “Enquanto o revolucionário deposita toda a esperança no avanço em direção a um futuro idealizado e canaliza suas energias políticas no sentido de construir uma nova sociedade, o reacionário volta seus olhos a um passado mitificado que passa a inspirar toda a sua ação política no presente. Por que se diferenciam do conservador? É que a característica posicional do conservadorismo aproxima o homem das circunstâncias do momento presente e o distancia de projeções hipotéticas para o futuro tanto quanto de representações idílicas do passado. O conservador é pé-no-chão, não troca um pássaro na mão por dois voando – atento à sabedoria popular. É evidente que isso não significa que o estadista conservador seja um imobilista medroso que não move um dedo para alterar o status quo. Ao contrário do reacionário, o conservador encara as circunstâncias que o envolvem e busca compreender de que maneira pode agir sobre elas. Sempre consciente das limitações de seu intelecto e cioso do valor das instituições duradouras do Estado e da sociedade. Portanto, o reacionário devota-se integralmente ao culto do passado, o conservador volta-se somente àquilo que o passado legou de perene e vital ao tempo presente. Se é verdade que os conservadores devem conhecer a história imperial do Brasil sem as lentes deformadoras da historiografia esquerdista, é também verdade que o simples conhecimento do passado não fornece a ninguém as ferramentas necessárias à ação política.”.

Não sei quais as fontes utilizadas pelo meu nobre colega de tribuna de molde a apresentar as linhas gerais do ideário tradicionalista; o que fica claro é que jamais, por certo, leu os seus grandes doutrinadores, de vez que se limita a repetir, monocórdico e presunçoso, as lições de seu mestre João Pereira Coutinho, autor de obra relevante para a elaboração doutrinal do conservadorismo mas, igualmente, de irreprimível preconceito – e ignorância – contra o ideário tradicionalista.

Desconhecer – ou empurrar para o lado – a existência de autores da estatura do já citado Miguel Ayuso; do também espanhol José Miguel Gambra, catedrático da Universidade Complutense de Madrid e de cuja obra extraí a epígrafe deste sofrível ensaio; do italiano Danilo Castellano, catedrático da Universidade de Udine, e do argentino Juan Fernando Segovia, catedrático da Universidade de Mendoza, para ficarmos apenas nesses quatro veteranos, de rica e variada atividade acadêmica e vastíssima obra publicada, é, pelo motivo que seja, imperdoável a qualquer estudioso das ideias políticas e homem de pensamento. E aqui não me refiro ao meu bom Rafael Valladão, imberbe articulista, mas ao também professor universitário João Pereira Coutinho, que, em seu badalado livro As ideias conservadoras explicadas a revolucionários e reacionários, [15] criou um espantalho de tradicionalismo – ao qual juntou arbitrariamente elementos do absolutismo francês, do tradicionalismo hispânico, do romantismo da Restauração francesa e de um amargurado reacionarismo integrista –, para lhe poder melhor bater com a marretada sutil do anglicismo liberal.

Mas, afinal, o que seria esse bendito tradicionalismo, pelo qual a típica “nova direita” brasileira parece não nutrir a maior das simpatias? Recorramos a um doutrinador da nova geração, filho ingrato dessa mesmíssima “nova direita” forjada na doce labuta das redes sociais, o prof. Cesar Ranquetat Júnior, doutor em Antropologia Social, professor universitário e autor do livro Da direita moderna à direita tradicional – análise de uma categoria metapolítica, [16] que reputo, desde logo, um clássico da história das ideias em qualquer língua, tanto pela exatidão conceitual com que apresenta as diversas correntes direitistas quanto pela defesa desassombrada que faz do que intitula “direita tradicional”.

Vejamos o que nos diz: “A direita conservadora não é a direita tradicional. Em que pese o autêntico espírito conservador ser um dos traços da direita tradicional, ela não se esgota em um conservadorismo defensivo, muito menos em formas por demais modernizadas e liberais de conservadorismo, hoje, dominantes no universo política e intelectual de determinada direita. É um contrassenso tentar preservar a ordem social e política atual intrinsecamente subversiva, por ser proveniente da Revolução Francesa e, por essa razão, uma expressão da ideologia individualista liberal. Mais do que conservar o que existe, é fundamental iniciar um esforço de regeneração e restauração de uma verdadeira ordem civilizacional ancorada nos princípios da tradição. O que de fato importa não é a conservação de determinadas instituições sociais e costumes já decadentes e estéreis, mas a fidelidade a certos princípios universais, imutáveis e eternos. Não se trata, desse modo, de retornar a um passado histórico longínquo, remoto ou próximo, mas de retornar ‘às origens’, de fazer ressurgir no presente o espírito tradicional.” [17] Onde estão aqui a mitificação do passado, o saudosismo melancólico, o endeusamento de velhas estruturas e instituições, a repulsa a toda e qualquer ideia de desenvolvimento?

Fazendo um apanhado completo – tanto quanto possível – do que há de mais representativo do ideário tradicionalista entre os seus maiores teóricos, inobstante as diferenças existentes entre as suas correntes, chegamos facilmente a um corpo de princípios indiscutíveis e inegociáveis:

I – União da Igreja e do Estado, em conformidade com o Magistério da Igreja, em que, ressalvadas as respectivas autonomias, o poder temporal se ordena ao poder espiritual, tal como o corpo se ordena à alma e a razão à fé;

II – Embora se prefira claramente a monarquia, o ponto de honra entre os tradicionalistas não diz respeito tanto à forma de governo, senão quanto ao espírito do regime, nem coletivista nem individualista, nem autoritário nem absenteísta, de base corporativa (representação a partir das agremiações econômicas e culturais, brotadas organicamente do meio social e independentes em face do poder público, diferentemente dos corporativismos fascista e nazista e dos partidos), federativa e municipalista; [18]

III – A fé católica como coluna-mestra da comunidade política, plenamente reconhecida pelo Estado e conformando por completo as instituições políticas e o meio social.

IV – Primazia do direito costumeiro sobre o escrito;

V – A propriedade privada e a livre iniciativa como prerrogativas incontornáveis das famílias, desde que preservado o bem comum.

Nem seria necessário dizer-se, como arremate, que o tradicionalismo é filho muito cioso e obediente da Santa Igreja e papista dos mais ranzinzas, e que julga absolutamente indispensável à salvaguarda da Fé e à salvação das almas, em face de mandamento divino confiado à Igreja, a instauração de uma civilização conforme os verdadeiros preceitos evangélicos.

 

Um adendo sobre o patrimonialismo:

Um dos pontos mais atacados igualmente por liberais e liberais-conservadores é o chamado “patrimonialismo”. Mesmo estudiosos brilhantes, como os intelectuais ligados ao Instituto Liberal – e não o poderia ser diferente, posto que parece ser da índole do liberalismo, qualquer que seja a sua tendência, a pobreza sociológica, a negligência à história e o apriorismo político [19] –, fazem coro com a cantilena segundo a qual a raiz de todos os nossos males institucionais e políticos, a natureza da corrupção que medra e apodrece a nossa já podre República presidencialista, é o propalado e amaldiçoado “patrimonialismo”, isto é, a gestão da coisa pública como se coisa privada fosse por parte de políticos fisiologistas e burocratas medíocres, ensejando a insolvência dos serviços públicos, a falência das instituições, a corrupção generalizada e o descrédito completo da nação.

Notáveis como Roberto Campos, Ubiratan Borges de Macedo, Ricardo Vélez Rodriguez, Antônio Paim e José Osvaldo de Meira Penna, para ficarmos apenas nesses, padecem de uma espécie de vício mental – a obstinação em interpretar a história a partir de critérios estranhos ao período objeto da análise. Utilizar como baliza aspectos raciais ou classistas, no considerar a velha Cristandade medieval, é tão inócuo quanto praguejar contra as capitanias hereditárias em nome do individualismo liberal ou do capitalismo. O que eram os fidalgos feitos donatários por el-rei Dom João III – proprietários de uma determinada extensão de terra ou funcionários públicos? Exatamente os dois. O regime das capitanias, sob o claro influxo das instituições medievais, em que pesem as diferenças no que tocam à adaptabilidade do meio geográfico, consistia num modelo de organização social em que se verificava uma saudável confluência do direito público com o direito privado, em perfeita consonância com o espírito da época, em que a comunidade política não era concebida como um amontoado de indivíduos espalhados, senão como membros harmonicamente desiguais de um só corpo, uma grande e vasta família. Algo incompreensível às sociedades inorgânicas da modernidade política. [20]

 

Uma exortação à dureza cristalina e ao combate leal e franco:

Que “as ideias têm consequências” – para relembrar aqui do magnífico livro de Richard Weaver [21] – e as paixões humanas concorrem decisivamente para a potencialização daquelas, bem como o contrário, é algo que resta evidente, consoante as meditações do prof. Plinio Corrêa de Oliveira contidas em seu indispensável Revolução e contra-revolução.

Os absurdos e as bobagens defendidos – com a típica e exaltada presunção dos ignorantes – pelo sr. Rafael Valladão em seu ensaio é exemplo patente de que se, por um lado, “a direita” deve permanecer unida, leal e firmemente, contra o inimigo comum – que é o comunismo –, por outro o tempo das distinções doutrinais já começou.

Teria, portanto, chegado o tempo das escaramuças, das polêmicas desbragadas, dos arranca-rabos escandalosos? Há tempo para tudo isto? Não me parece. Tendo sido duro, muitas vezes, com o sr. Rafael Valladão, ao longo deste modesto ensaio, teria eu desrespeitado o meu candidato a oponente? Também não me parece. Lancei mão, sem dúvida, da dureza cristalina – algo debochada, no meu caso – dos adversários francos e leais, mas não ao ponto do achincalhe. Há desrespeitos que tanto mais destroem quanto menos barulho fazem. É bom pensar numa geração menos soberba e menos dissimulada, que possa respeitar e admirar mais e mais, que tenha horror à safadeza dos levianos e maledicentes, e que o diga em alto e bom som, face a face. Afora isso – como diria o velho Machado, “tenho tédio à controvérsia”.

 

Referências:

[1] GAMBRA, José Miguel. La sociedad tradicional y sus enemigos. Salamanca: Guillermo Escolar Editora, 2019, p. 13.

[2] Ver aqui o artigo do sr. Rafael Valladão: www.burkeinstituto.com/blog/opiniao/por-que-o-neomonarquismo-e-reacionario.

[3] Que o diga o imbróglio quando do lançamento do excelente Guia bibliográfico da nova direita – 39 livros para compreender o fenômeno brasileiro (São Luís: Livraria Resistência Cultural Editora, 2017; prefácio: Rodrigo Constantino), de Lucas Berlanza, cuja 1ª edição tive o prazer de publicar. A quem tiver paciência: www.boletimdaliberdade.com.br/2017/06/29/polemica-eduardo-bolsonaro-faz-critica-a-alexandre-borges-envolvendo-livro-sobre-nova-direita

[4] Sobre o nosso primeiro Imperador, ver a clássica A vida de D. Pedro I (Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1988, Reconquista do Brasil, 3 tomos), de Otávio Tarquínio de Sousa.

[5] Sobre este ver duas tão extensas quanto modelares biografias, a saber: História de Dom Pedro II – 1825-1891 (Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1977, Reconquista do Brasil, 3 tomos), de Heitor Lyra, e História de D. Pedro II (Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1975, Coleção Documentos Brasileiros, 5 tomos), de Pedro Calmon.

[6] Mais do que indicada a leitura de O cavaleiro negro – Arlindo Veiga dos Santos e a Frente Negra Brasileira (São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2015), de Teresa Malatian. Ver, também, um artigo do amigo Victor Emanuel Vilela Barbuy, “Arlindo Veiga dos Santos, arauto e poeta de uma Pátria-Nova”: cristianismopatriotismoenacionalismo.blogspot.com/2009/03/arlindo-veiga-dos-santos-arauto-e-poeta

[7] O professor, historiador, jornalista e biógrafo paulista Sebastião Pagano (1908 – 1972) é tão desconhecido do grande público – o que quer que isso signifique no Brasil – que mesmo os monarquistas dos arraias “ultramontanos” lhe desconhecem a obra e a atuação cívica e política. Indico, do grande monarquista paulista, a contundente biografia que escreveu de um grande brasileiro: Eduardo Prado e a sua época. São Paulo: Editora O Cetro, s/a.

[8] Refiro-me, evidentemente, ao parlamentarismo monárquico, também chamado monarquia constitucional ou monarquia liberal, em que o rei reina mas não governa, cabendo-lhe a Chefia de Estado, sendo a Chefia de Governo de responsabilidade da bancada majoritária do Legislativo. Remeto o leitor interessado – isto é, uma ou duas almas piedosas – ao verbete “Monarquia” da, ainda hoje, vulgata do pensamento conservador e tradicionalista – Dicionário de política (São Paulo: T. A. Queiroz, 1998), de José Pedro Galvão de Sousa, Clóvis Lema Garcia e José Fraga Teixeira de Carvalho –, em que são sintetizadas, doutrinal e historicamente, as três modalidades de monarquia: a par da constitucional ou liberal, figuram a monarquia tradicional ou limitada e a absolutista, esta uma corrupção do princípio monárquico.

[9] Costumo me referir dessa forma ao livro do dr. Armando, como “catecismo”, uma vez que foi escrito em forma de perguntas e respostas.

[10] SANTOS, Armando Alexandre dos. Parlamentarismo, sim! Mas à brasileira: com Monarca e com Poder Moderador eficaz e paternal. São Paulo: Artpress, 1992, p. 266.

[11] Sobre a mentalidade igualitária, muito instrutiva a leitura do livro do dr. Adolpho Lindenberg, em colaboração com Armando Alexandre dos Santos, A utopia igualitária – aviltamento da dignidade humana (São Paulo: Ambientes e Costumes, 2016).

[12] Os números da Verbo podem ser consultados aqui: https://fundacionspeiro.org/revista-verbo

[13] O professor, jurista e filósofo Ricardo Henry Marques Dip, desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, grande nome do direito natural clássico e do direito registral e notarial, foi eleito e empossado, em fins do ano passado, presidente da União Internacional de Juristas Católicos. Pela primeira vez tem-se um brasileiro presidindo a veneranda e relevantíssima instituição.

[14] O nosso Jackson de Figueiredo se considerava um “reacionário” na medida em que procurava “reagir” contra a desordem; um de seus livros mais combativos se chama, não por acaso, A reação do bom-senso (Rio de Janeiro: Anuário do Brasil, 1922). O mesmo dizia de si o colombiano Nicolás Gómez Dávila, de obra tão monumental quanto minimalista, a exemplo de seus Escolios a un texto implícito (Girona: Ediciones Atalanta, 2009).

[15] COUTINHO, João Pereira. As ideias conservadoras explicadas a revolucionários e reacionários. São Paulo: Três Estrelas, 2014.

[16] Indicadíssima a entrevista que o Lucas Mendes fez com o Autor sobre o seu livro: www.youtube.com/watch?v=Kag5RCrkhMk

[17] RANQUETAT JÚNIOR, Cesar Alberto. Da direita moderna à direita tradicional – análise de uma categoria metapolítica. Curitiba: Prismas, 2017, pp. 238-9. Esta edição já está esgotada, mas acaba de sair a segunda, revista, pela Danúbio, com apresentação de Lucas Mendes.

[18] Aqui pode-se considerar que a unidade política do Estado não descambará jamais para a tirania nem para autoritarismos vários, em razão da ampla descentralização administrativa proporcionada pelos corpos intermediários, associações naturais ou voluntárias, mantidas exclusivamente pelos seus membros, livres de qualquer interferência estatal, conforme o princípio da subsidiariedade.

[19] Sobre o problema do apriorismo político, ver: O idealismo da Constituição (Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, Brasiliana, 1939, 2ª edição) e Instituições políticas brasileiras (Brasília: Edições do Senado Federal, 2019), ambos de Oliveira Vianna, e Raízes históricas da crise política brasileira (Petrópolis: Vozes, 1965), de José Pedro Galvão de Sousa, em especial o capítulo I deste intitulado “O apriorismo político no Brasil”.

[20] A modernidade política, se teve como executor o enciclopedismo francês, que desembocou na Revolução de 1789, teve como avô o protestantismo. Ver, a respeito, o livro do prof. Danilo Castellano: Martín Lutero – el canto del gallo de la modernidad (Madrid: Marcial Pons, 2016). Ver, também, Revolução e contra-revolução, de Plinio Corrêa de Oliveira (São Paulo: Instituto Plinio Corrêa de Oliveira, 2017).

[21] WEAVER, Richard. As ideias têm consequências. São Paulo: É Realizações, 2016, 2ª edição, tradução de Guilherme Ferreira de Araújo, apresentação de Bruno Garschagen.

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As posições expressas em artigos por nossos colunistas, revelam, a priori, as suas próprias crenças e opiniões; e não necessariamente as opiniões e crenças do Burke Instituto Conservador. Para conhecer as nossas opiniões se atente aos editoriais e vídeos institucionais

José Lorêdo Filho

José Lorêdo Filho

Livreiro e editor da Livraria Resistência Cultural Editora, cavaleiro da Ordem Equestre do Santo Sepulcro de Jerusalém, sócio-correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP) e chanceler do Círculo Monárquico de São Luís.

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