Crise e restauração das humanidades

São cada vez mais frequentes os comentários e críticas sobre o caráter político e o viés ideológico de esquerda de parte importante das investigações, pesquisas e publicações das chamadas Ciências Humanas. Abstraindo os aspectos emocionais e irracionais, assim como certos exageros e extrapolações presentes em muitas destas observações, há algo de verdadeiro em todo este acalorado debate. Entendo que o diagnóstico está parcialmente correto, porém discordo da solução proposta por setores mais radicalizados de neutralizar e eliminar as disciplinas de Filosofia e Ciências Humanas do âmbito escolar e universitário. Esta terapêutica draconiana e equivocada deve levar a uma piora geral do quadro cultural com a acentuação dos sintomas diagnosticados. O fato de que, grosso modo, estes campos do saber estejam atualmente dominados pelo pensamento de esquerda não significa necessariamente que estes conhecimentos não tenham importância e valor educativo. A terapia mais sensata parece ser reconstruir e restaurar os estudos filosóficos, culturais e literários. A solução está em um longo e árduo processo de retificação e de retorno às fontes clássicas e humanísticas, fazendo com que a Filosofia, os Estudos Sociais e Culturais possam readquirir o prestígio e o sentido original de formas mais elevadas e superiores de conhecimento que, em síntese, auxiliem o ser humano na sua jornada de autoconhecimento e compressão da realidade.

Além disso, o que está ocorrendo com as Ciências Sociais e a Filosofia é apenas um indício, ou melhor, um sintoma de uma desordem intelectual e de um desequilíbrio civilizacional de caráter mais vasto, complexo e estrutural. Estamos em face de um ponto de saturação e entropia, de uma crise espiritual generalizada que, como uma espécie de metástase, atinge todas as esferas da vida social. O materialismo, o subjetivismo, o hedonismo e o hiperindividualismo da cultura pós-moderna espraia-se por todo o tecido social, não há grupo humano, instituição ou prática que, de algum modo, não estejam sendo afetadas por estas “patologias”. O problema é no fundo sistêmico e tem relação com as próprias bases, estruturas e a configuração de ideais e valores que fundamentam a civilização moderna e contemporânea.

 

Ciências Sociais, ideologias de esquerda e historicismo:

Ao longo do meu trajeto de estudos acadêmicos no Direito, na Filosofia, na Sociologia e na Antropologia pude testemunhar e constatar na prática a hegemonia das ideias de esquerda e do “paradigma” progressista. Em sua grande maioria professores, alunos, os autores lidos, os livros e artigos indicados, as linhagens de pensamento investigadas e os problemas e temas discutidos seguem uma explícita orientação doutrinária e uma cosmovisão de esquerda. Não propriamente o marxismo ortodoxo e “hardcore” prevalece nestes ambientes, mas formas mais sutis e refinadas de correntes de reflexão neomarxistas e pós-marxistas. Em geral, pululam as teorias pós-estruturalistas, pós-coloniais, desconstrucionistas e pós-modernas. Vigoram de maneira soberana as utopias diversitárias, o feminismo radical, a gender theory, o multiculturalismo, o pragmatismo de Richard Rorty, a teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas, o “culto às minorias”, a religião laica dos direitos humanos, e toda a complexa e multifacetada nebulosa de valores e ideologias ligadas ao que, para sintetizar esta curiosa e paradoxal constelação de ideias, costumo chamar de concepção do homem e do mundo de teor liberal-libertária, secularista e cosmopolita que é, inquestionavelmente, alérgica e refratária a tudo o que lembre os valores tradicionais, o conservadorismo, a família natural, a amor à pátria, as identidades culturais enraizadas, “a moral burguesa”, e os princípios sociais e jurídicos de autoridade, hierarquia e ordem. Estes “valores retrógados”, “resíduos psicológicos do passado”, precisam ser problematizados e superados, já que contrariam o destino da história e o “espírito do tempo”. Trata-se, em suma, de um esquerdismo difuso, “libertário e pós-moderno”, mais devoto de Michel Foucault do que de Karl Marx, próximo e na verdade bastante similar à new left de matriz norte-americana; filosoficamente fundado no relativismo cultural e moral e em um construtivismo radical.

No entanto, esta atual primazia de correntes de pensamento de esquerda nas Ciências Sociais precisa ser entendida a partir de um enfoque mais abrangente, pois se vincula com as próprias raízes e origens históricas destes saberes, e as ambições metapolíticas e os objetivos implícitos de planificação e engenharia social existentes nestes campos científicos. Ora, os pais fundadores das Ciências Sociais como Auguste Comte, Émile Durkheim, Karl Marx, Max Weber, Lewis Henry Morgan, Bronislaw Malinowski, Marcel Mauss, Franz Boas e o pai da Ciência Política moderna, o florentino Nicolau Maquiavel, bem como os principais discípulos e continuadores das obras destes fundadores de escolas, adotaram uma postura de desconfiança, quando não mesmo de explícito rechaço, aos valores religiosos e em relação às realidades metafísicas, em particular à tradição espiritual cristã. Lembro que a maioria deles era ateu ou agnóstico. De algum modo, as Ciências Sociais surgem e se afirmam ao longo dos séculos XIX e nas primeiras décadas do século XX como um paradigma de explicação do homem e do mundo social alternativo, ou melhor, de substituição à cosmovisão cristã tradicional até então imperante na cultura ocidental. É importante ressaltar que, em linhas gerais, as Ciências Humanas e Sociais, incluindo a Ciência Histórica, emergem em um contexto civilizacional permeado por filosofias da cultura e da sociedade de matizes evolucionistas e naturalistas estribadas nas especulações de Herbert Spencer, Hegel e Saint-Simon, e por uma visão positivista da ciência. Configuram-se na modernidade, em um ambiente social marcado pela urbanização, a industrialização, o capitalismo, o liberalismo político, a democracia e o laicismo, e em parte procedem de significativos movimentos políticos que militavam por reformas sociais. São, assim, até certo ponto, um resultado desta atmosfera societal. São filhas do espírito moderno impregnado pelo racionalismo, o imanentismo e o criticismo. Como explica o sociólogo Peter Berger (1972), estas ciências, em particular a Sociologia, possuem uma peculiar disposição “desmitificadora”, e uma inclinação cosmopolita e emancipadora. Isto é bastante revelador e significativo. O espírito revolucionário e o impulso modernizador e secularizador, parecem ser traços que permeiam boa parte das teorias sociais, políticas e culturais que orientam estes campos do conhecimento.

Em seus primórdios, as Ciências Sociais constituíram-se com base nos conceitos e métodos das Ciências Naturais, mais especificamente as categorias descritivas e analíticas da Biologia e da Física. Muitas das molduras teóricas e das noções centrais da Sociologia, da Antropologia e da própria História eram provenientes das Ciências Físicas e Biológicas, como por exemplo: os conceitos positivistas de dinâmica e estática social e a noção funcionalista de organismo social. Mais ainda: cabe frisar que Comte inicialmente definiu a ciência da sociedade humana como uma “Física Social”, uma espécie de ciência natural da vida social. Além disso, é inconteste que, ao longo de todo o período de sua formação, estas ciências sofreram o influxo de elementos ideológicos e políticos. O positivismo de Comte e o Marxismo, vertentes fundadoras do pensamento sociológico, sempre foram ambivalentes, sendo simultaneamente teorias sociais e ideologias políticas, hipóteses científicas e projetos de remodelação total das estruturas sociais.

Usualmente, as Ciências Humanas procuram descrever, analisar e explicar os fenômenos humanos sempre pelo ângulo das forças e infraestruturas sociais, econômicas e políticas, reduzindo-os à perspectiva social e histórica, e, portanto, limitando-os ao imanentismo sociológico e ao economicismo. É evidente que, se por um lado, todo artefato, prática, instituição, hábito, mito, símbolo, rito, crença religiosa, movimento e ideologia política possui uma dimensão social e histórica, por outro, seu significado, origem, finalidade e valor não se esgota no plano puramente sociológico e material. Neste sentido, o filósofo Michael Oakeshott (2009), chega a afirmar que o emprego da palavra social nestes campos do conhecimento é tendencioso, visto que, quando acionada para descrever o comportamento e a ação humana, dissolve a conduta do ser humano concreto de carne e osso em uma miríade de relações, associações, interações e práticas. O indivíduo real é visto e examinado unicamente como um componente “não inteligente” de um processo mecânico, uma peça funcional à totalidade do sistema social, uma célula do organismo social. Ademais, os seres humanos e suas ações no mundo são vistas exclusivamente como algo que tem sentido quando conectadas e em função destas relações, associações e práticas coletivas. O social, a sociedade, o sistema social são, desta maneira, reificados, transmutando-se numa espécie de fetiche que tudo absorve, engloba e explica. Os seres humanos concretos não são mais percebidos como agentes livres e autoconscientes com capacidade de ação, eleição, decisão e resistência, transformando-se em meros elementos e engrenagens de um maquinismo anônimo e impessoal. Identifica-se a realidade exclusivamente com a realidade social e histórica, fazendo do homem um mero produto do meio social e das estruturas políticas mundanas, não existindo uma natureza humana que seja anterior e superior às forças sociais e influxos culturais. Oblitera-se por completo a definição do homem como pessoa, uma realidade espiritual dotada de dignidade e intangibilidade, com um destino transcendente e eterno, uma criatura que participa do Logos divino.

O perigo de coisificar os agentes humanos que, deste modo, de sujeitos ativos tornam-se objetos passivos de intervenções e manipulações das mais variadas é algo real nestas ciências, como bem demonstrou o sociólogo Zygmunt Bauman (2010), que, ainda, alerta para o risco da utilização da Sociologia, da Antropologia e da Psicologia como armas de controle social, isto é, como mecanismos de gerenciamento e administração dos processos culturais e políticos.

O positivismo das Ciências Sociais ancora-se na ideia axial de uma separação fundamental entre juízos de fato e juízos de valor. De acordo com esta premissa, o cientista social não teria competência para emitir julgamentos de valor, devendo restringir sua atividade investigativa à emissão de juízos descritivos e factuais. Apenas os juízos factuais teriam um caráter objetivo, os julgamentos éticos acerca da vida humana, da sociedade e de condutas seriam subjetivos e arbitrários. Max Weber, por exemplo, partia do postulado não demonstrado de que estes saberes, para manterem sua dimensão empírica, não poderiam solucionar o “conflito entre os múltiplos valores” existentes em uma dada sociedade, pois, a inteligência humana seria incapaz de alcançar normas morais objetivas. Na realidade, não existiriam sistemas de valores verdadeiros e universais, mas apenas relativos, contingentes e variáveis de acordo com cada cultura e época histórica. Há um problema neste tipo argumentação. Como bem asseverou Leo Strauss (2011), se o sociólogo, antropólogo ou historiador deve ser eticamente neutro, ele precisa emancipar-se de qualquer olhar valorativo e compreensão axiológica dos fenômenos humanos, sendo assim, acaba por aderir a um posicionamento de cegueira e indiferença moral, de neutralidade diante do bem e do mal, do certo e do errado. Porém, tal atitude na prática se revela uma tremenda força limitadora do ponto de vista cognitivo, quando não mesmo uma ficção:

É impossível estudar um fenômeno social, isto é, todos os importantes fenômenos sociais, sem fazer juízos de valor. Um homem que não vê razão para desprezar pessoas cujo horizonte é limitado a seu consumo de comida e digestão pode ser um econometrista tolerável, ele não pode dizer nada de relevante sobre o caráter da sociedade humana. Um homem que se recusa a distinguir entre um grande líder político e impostores insanos e medíocres pode ser um bom bibliógrafo; mas não pode dizer nada de relevante sobre política e história política. Um homem que não pode distinguir entre um pensamento profundamente religioso e uma superstição frágil pode ser um bom estatístico; ele não pode dizer nada de relevante sobre sociologia da religião. De maneira geral, é impossível compreender pensamento ou ação ou trabalho sem avaliá-lo (Strauss, p.8, 2011).

Concretamente, em suas pesquisas e análises, os cientistas sociais abandonam a tão propagada necessidade de “neutralidade axiológica”, pronunciando em diversas oportunidades e contextos juízos de valor:

[…] nós não devemos deixar de notar os juízos de valor invisíveis ocultados dos olhos incapazes de discernir, mas mesmo assim muito eficazes em conceitos alegada e puramente descritivos. Por exemplo, quando cientistas sociais fazem um distinção entre hábitos democráticos e autoritários ou tipos de seres humanos, o que eles chamam de “autoritário” é ao que me parece uma caricatura daquilo que eles, como bons democratas de um certo tipo, desaprovam. Ou quando eles falam de três princípios de legitimação – racional, tradicional e carismática – a sua própria expressão “rotinização do carisma” revela uma preferência protestante ou liberal que nenhum judeu ou católico conservador aceitaria […] (Strauss,p.8, 2011).

Ao adotar um paradigma evolucionista e progressista, as Ciências Sociais, conforme ressalta o teólogo francês Jean Borella (1981), tendem a observar e estudar determinadas práticas, costumes, instituições e fenômenos sociais como uma espécie de “sobrevivência histórica”, um resíduo obscuro e “arcaico” de épocas pretéritas, um passadismo que precisa ser superado; não é à toa neste sentido o uso de termos e categorias como paternalista, patriarcal, autoritário, reacionário, conservador, fascista, capitalista, alienante, para descrever e classificar algumas estruturas, comportamentos e atitudes que não se enquadram na visão de mundo evolutiva presente em parte importante das doutrinas e teorias dominantes nas Ciências Humanas. Para ilustrar, cito como exemplo, a minha pesquisa de doutorado que trata sobre a polêmica em torno da presença de símbolos religiosos como cruzes e crucifixos em espaços públicos como tribunais de justiça e parlamentos. Pude perceber que, entre sociólogos, antropólogos, politólogos e em parte significativa do meio jurídico, prepondera a narrativa secularista que, resumindo esta complexa temática, parte do pressuposto de que em uma sociedade democrática e pluralista o Estado deve ser laico; notem o juízo normativo, afirmando a separação constitucional entre a esfera religiosa e a esfera política e jurídica, e, portanto, opondo-se e não permitindo a presença de objetos e símbolos religiosos em repartições estatais. A existência destes símbolos, representaria uma afronta ao principio republicano do Estado secular. A presença destes objetos é vista como algo que entra em choque com a ideologia moderna de teor secularista, de modo que, qualquer tentativa de defesa de um Estado confessional, cristão, e de uma sociedade fundada em valores religiosos, é tomada como um disparate, um discurso “fundamentalista”, um “medievalismo”, um resquício de épocas teocráticas que destoa e fere o sacrossanto e inquestionável princípio da laicidade estatal.

Seguindo esta atitude, cientificamente controvertida, acabam por aceitar o dogma secularista moderno do progresso moral e social rumo a uma idílica “sociedade aberta”, flexível e líquida, sem fronteiras, tabus e limites físicos, geográficos e morais, estabelecendo para si mesmos uma missão revolucionária de ruptura e de crítica permanente e voraz aos valores, princípios e instituições tradicionais que, de alguma maneira, impedem o avanço cultural, a emancipação individual e a libertação da humanidade. Em síntese, identifica-se o progressismo com o bem, e todo tipo de conservadorismo e tradicionalismo com o mal. Curiosamente, entretanto, este modo de raciocínio parece só valer quando está em jogo os valores “pré-modernos” ligados à tradição ocidental greco-romana e cristã, pois, quando se está examinando outros povos e culturas não ocidentais e não cristãs escorrega-se muitas vezes para posturas apologéticas que, vale sublinhar, de propriamente científicas pouco apresentam. Ou então exalta-se apenas o que é cool, hipermoderno, libertário, “periférico e marginal” no ocidente. Neste caso estamos em face dos modismos ideológicos relacionados com a sacralização da noção de diversidade, pedra filosofal e mantra mágico do novo clero laico pós-moderno. Cresce assim, como bem observa Roger Scruton (2015), uma “cultura do repúdio”, um afã por questionar incessantemente e descontruir os pilares e princípios morais que configuraram a civilização ocidental, percebidos como um adorno que oculta formas nocivas de poder e dominação. Desta maneira, ao invés de transmitir, conservar, absorver e aperfeiçoar a herança espiritual e intelectual de nossa cultura intenciona-se desmascará-la e substituí-la por um novo padrão moral e social fundado nos dogmas e crenças do politicamente correto, do igualitarismo e do multiculturalismo.

Em suma, para o historicismo, imperante nas Ciências Humanas, os pensamentos, crenças, convicções e ideias são realidades puramente históricas, e assim destinadas a mudar e perecer. No mundo humano e das relações sociais reinaria o devir histórico, a transformação incessante. Sendo assim, como bem explica o educador e filósofo Carlos Daniel Lasa (2007), de acordo com este paradigma doutrinário não existem, para além do mundo em permanente mutação dos seres e das coisas, constantes que funcionem como parâmetros para distinguir o bem do mal, o certo do errado. Nega-se a existência de princípios morais universais e imutáveis com validade objetiva e perene.

Não obstante estas observações gerais e hipóteses explicativas penso que se faz necessário um trabalho mais cuidadoso e pormenorizado de mapeamento empírico do terreno. Nos Estados Unidos e na Europa existem muitos livros e artigos que demonstram de maneira cabal a presença hegemônica de elementos ideológicos progressistas e de esquerda nas Ciências Humanas. Espero que estas pesquisas sejam também desenvolvidas em breve, no Brasil.

 

Ciência moderna, sabedoria e formação do caráter:

Não há como dissociar a atual proliferação nas Ciências Humanas de excêntricas ideologias desconstrucionistas, “pós-modernas” e diversitárias de esquerda, do longo e multifacetado processo histórico e cultural de secularização e descristianização das sociedades ocidentais, que ocorre paralelamente com a afirmação e consolidação de uma visão cientificista e positivista do mundo.

Ora, as ciências modernas, sejam as naturais ou humanas, desvincularam-se integralmente da sabedoria e dos princípios de ordem espiritual concentrando seus esforços na transformação da paisagem natural deste mundo e na reconfiguração radical do ser humano e das sociedades numa direção puramente terrestre e horizontal. Com efeito, o projeto cientificista e materialista da modernidade rompeu os laços do humano com o transcendente, ofuscando a percepção do sagrado e o sentido da verticalidade presente na estrutura do cosmos, abandonando, desta maneira, o compromisso decisivo com a elevação e a formação integral da pessoa humana.

Predominam as visões do homem e da sociedade de feições unilaterais, unidimensionais, parciais, deterministas e redutoras, próprias da intrínseca tendência segregativa e fragmentária das ciências modernas. Herdeiras e produto cultural mais acabado do naturalismo, do positivismo, do racionalismo e do empirismo, nascem com a ambição de suplantar e demolir as explicações metafísicas e teológicas da realidade humana e do cosmos. Indubitavelmente, nascem com um escopo e uma finalidade precípua de ordem prática e técnica. São formas de saber de dominação e controle sobre a natureza e o mundo social humano que, cabe enfatizar, não se preocupam mais em descobrir e desvelar o que são as coisas em sua essência, mas apenas apreender o seu modo de funcionamento, apresentando assim um caráter eminentemente operativo. O mundo da natureza e o universo humano e cultural são concebidos como um campo gigantesco de materiais e objetos plásticos que podem ser utilizados para todo o tipo de experimentação e manipulação. Realidades plásticas estas, que em razão de sua maleabilidade e ductilidade, podem ser constantemente construídas e descontruídas, feitas e refeitas.

A tendência à fragmentação e à especialização são traços constitutivos do projeto científico e técnico que, em sua vertente racionalista e construtivista, estraçalhou com a visão integral e simbólica do homem e do universo existente nas sociedades tradicionais. Como efeito disto, na contemporaneidade é notável a proliferação de investigações e debates científicos sobre assuntos, fatos e questões secundárias, exóticas, insignificantes e efêmeras. Do ponto de vista educacional, uma das principais consequências da prevalência da visão cientificista do mundo é a consolidação de um modelo pedagógico voltado à mera formação técnica e profissional, um ensino que privilegia a transmissão de informações e de habilidades específicas, que possibilitem a inserção do graduado no mercado de trabalho. Não faz mais parte do horizonte educativo atual a formação de um ser humano culto, disciplinado e responsável; consciente de si, de seu mundo e da história de sua civilização.

Conforme assevera Michael Oakeshott (2009), as escolas e as universidades sempre foram concebidas como espaços de aprendizagem e compreensão da condição humana distanciados das exigências utilitárias e dos compromissos cotidianos da vida ordinária. A educação verdadeira liberta o homem do aqui e agora, e dos modismos e ilusões imperantes em determinada época. Liberta o homem do mero “fato de viver”, da tirania do momento e do provincianismo temporal. Uma educação focalizada obstinadamente nos assuntos do dia, no que é relevante socialmente e naquilo que exerce um fascínio e uma atração de fundo emocional por ser novo e excêntrico é uma contrafação.

Segundo lembra o filósofo politico inglês, estes espaços e ambientes apartados dos ruídos e da agitação do mundo propiciavam o contato com ideias, conceitos, imagens, linguagens, símbolos, princípios e formas de perceber e entender o mundo, diferenciadas e distintas das propagadas pela sociedade circundante. Havia algo de ascético e de monástico neste modelo educativo, pois, além da separação e do distanciamento em relação ao mundo imediato e local do estudante e das preocupações triviais do cotidiano, buscava-se certa disciplina do intelecto, da vontade e da sensibilidade, a elevação do espírito e a excelência moral que, ainda, exigiam do mestre e dos aprendizes um redirecionamento da atenção, um refinamento da compreensão, humildade, paciência, coragem e uma apropriada elegância. É na escola e na academia que as jovens gerações eram iniciadas no mundo da cultura; era lhes transmitida de uma maneira séria e ordenada uma valiosa herança intelectual, imaginativa e moral. O mestre como uma agente de civilização era responsável por esta tarefa grave de disseminar este legado aos alunos, estabelecendo com estes uma conversação e uma reflexão séria e metódica sobre os problemas fundamentais da vida humana, e acerca de questões e temas de amplitude universal e valor perene.

A verdadeira educação e a autêntica cultura contrapõem-se a lógica da produção e do consumo, e a redução de todos os valores do espírito aos valores mercantis e econômicos. Tradicionalmente, a escola e a universidade foram concebidas como âmbitos privilegiados para o cultivo do ócio contemplativo. Segundo explica o educador Carlos Daniel Lasa (2007), a própria palavra escola derivada do grego skolé que significa originariamente ócio. Como é sabido o termo ócio advém do latim otium que é o contrário, o oposto, do negócio, neg-otium; isto é, para os romanos e para os gregos o ócio era visto com um estado da alma que se manifesta no silêncio, no repouso e na tranquilidade, permitindo assim a contemplação e observação atenta do cosmos. Deste modo, o ócio possibilita ao homem ver os objetos e a natureza tal como são na realidade, percebendo o “ser” das coisas. Daí surge o sentido da palavra teoria, que em grego significa justamente ver, olhar com atenção como a realidade se revela. O fim deste saber teórico é a verdade; é este modo de conhecimento uma atitude do espírito humano que, resumidamente, leva a uma visão da totalidade do real, fazendo com que a criatura humana transcenda o mundo da ação prática e da utilidade material.

A imposição de uma lógica mercantil e utilitária na esfera intelectual e cultural e nos espaços de ensino é algo no mínimo problemático e preocupante, uma vez que, fatalmente, conduz estas atividades humanas e instituições a cumprirem finalidades e objetivos que nada ou pouco tem a ver com a vida do espírito:

Tanto as escolas como a universidade devem fazer o possível para que o homem não fique enclausurado no asfixiante mundo da produção e do consumo; pelo contrário, devem propor que o seu ser se alargue em direção ao horizonte da verdade, do bem e da beleza, únicas realidades que são capazes de provocar uma dança eterna e gozosa do espírito (Lasa, 2007a, p. 24).

Na pedagogia moderna e contemporânea as ideias de formação do caráter e de desenvolvimento da consciência moral, assim como a noção de virtude, inexistem. A concepção tradicional da cultura, como cultivo do espírito – cultura animi– conforme o termo cunhado por Cícero foi completamente olvidada. Em contraposição às tendências atuais que equiparam cultura ao mero entretenimento que conduz o homem ao bem-estar físico e emocional e às concepções que, influenciadas pelo relativismo metodológico da Antropologia, enxergam “produtos culturais de inestimável importância” em qualquer atividade social e humana, é necessário resgatar a visão de cultura entendida como paideia, como formação do homem, como atualização de seus capacidades e potencialidades. Como afirma o educador e filósofo Carlos Daniel Lasa (2007b), cultura em seu sentido clássico é o que dá forma, ordem e equilíbrio à alma humana, é a força que orienta o homem para realizar em si mesmo o melhor, cultivando seu universo interior, intensificando a inteligência e a vontade, e refinando o gosto e a sensibilidade.

O obscurecimento das ideias clássicas de educação e cultura como formação integral da pessoa humana, em parte está, também, relacionada ao predomínio das ideologias igualitárias e pós-modernas e seus agentes que, de maneira ostensiva, apregoam a ideia de que tudo o que é moral, normativo e vinculado ao mundo do esforço, das regras, da disciplina, da hierarquia de valores e das distinções e diferenciações é algo repressor, “preconceituoso”, “fascista” e autoritário que, assim, precisa ser deixado de lado em prol de uma educação mais flexível, aberta e inclusiva. Ora, a obsessão contemporânea com a igualdade e a inclusão social é, em última instância, um mero paliativo e um apelo emocional cujas consequências reais são nefastas para a educação e a cultura. O resultado final é a degradação da cultura e do processo formativo, o nivelamento por baixo e a quebra de todo padrão, cânone e critério superior. Vale aqui sublinhar que a visão educacional de teor coletivista e uniformizante fundamenta-se na noção de adaptação social, ou melhor, na integração do indivíduo à sociedade, no seu ajuste e conformação ao ambiente coletivo. Segundo Michael Oakeshott (2009), ocorre nestas situações uma substituição da educação pela “socialização”, confundindo e comutando as considerações e finalidades de ordem formativa e educacional, por metas sociais. O que guia estes empreendimentos pedagógicos é a visão equivocada de que a missão das escolas e demais centros de ensino é corrigir as desigualdades sociais. Isto é um engano. Como bem ressalta o filósofo Jean-François Mattei (2003), as escolas não são espaços de retificação social, mas lugares de formação intelectual. Nota-se uma subordinação da educação aos imperativos sociais, que, são sempre, voláteis e passageiros. A educação não se fundaria mais em uma antropologia filosófica, em uma ideia do que é o homem e o seu fim natural, mas nas exigências, demandas e imposições existentes em determinado ambiente societal.

Em antítese à concepção moderna e contemporânea que entende a educação como um processo vital e social que deve estar centrado nos alunos e nos seus desejos, não impedindo assim o livre fluir espontâneo de suas inclinações e paixões, e ambicionando construir um tipo de indivíduo funcional e adaptado ao sistema social, a visão clássica reafirma a ideia de que a educação é uma forma de ação intelectual e moral que visa a humanização do homem, estando centralizada na busca do saber e do conhecimento formador, e no engrandecimento e enobrecimento da alma do educando.

Como no caso da educação tecnicista, um tipo de instrução focalizada unicamente na profissionalização e no mercado, a educação para a inclusão, assim como a educação para o desenvolvimento econômico, e as formas mais revolucionárias de educação para progresso dos costumes e para a emancipação política são modelos utilitários e instrumentalistas. A educação é reduzida à condição de ferramenta, de “ser um meio para”. De acordo com Lasa (2007a) nestas situações e exemplos ninguém mais pensa e defende a educação como a encarregada da tarefa de esculpir o homem, procurando satisfazer as necessidades antropológicas mais profundas. O fim da educação é o homem mesmo, o seu “ser interior”, e não algum elemento extrínseco.

É importantíssimo rearticular e relembrar os vínculos sutis existentes entre o verdadeiro conhecimento e a bondade e perfeição moral do ser humano, bem como a ideia do emprego da inteligência para o desenvolvimento e fortalecimento da personalidade. Para o pensamento clássico, a sabedoria era concebida como um alvo, uma meta a ser alcançado pelo ser humano. Este modelo de perfeição moral e intelectual tão bem representado e encarnado na personalidade de Sócrates consistia em uma vida examinada e significativa, numa busca constante pelo conhecimento de si mesmo, no autoexame e no aperfeiçoamento do espírito. A procura pela excelência e pela integridade moral, pela vida virtuosa e ordenada pela razão eram os objetivos máximos da tarefa educativa. A vida boa, plenamente humana e equilibrada, não pode, entretanto, ser confundida com a erudição livresca ou a mera habilidade técnica, não é um saber pelo saber, uma ciência pela ciência, mas uma forma de conhecimento vivido, encarnado, em ato, que orienta e dirige a vida de um modo verdadeiramente humano, com firmeza e prudência. A vida boa e ordenada para o homem é a vida inteligente, consciente, desperta e lúcida, conforme explica o filósofo Henry Veatch (2006, p. 99):

Para resumir esta seção […] sobre a relação da inteligência com o caráter humano, podemos dizer que a inteligência como um mero instrumento de riqueza ou poder ou prestígio não é eticamente significativa. Nem é a inteligência que a ética recomenda como o fim e o objetivo de nossas vidas. Ao contrário, é a inteligência aplicada ao problema de viver – dirigida não para fins não inteligentes como riqueza ou poder, mas no sentido de fazer as escolhas adequadas em nossa conduta como homens. Esse é o verdadeiro fim ou função do homem, ou ergon como Aristóteles chamou. O homem inteligente, nesse sentido, é o homem bom ou o homem de caráter, e vice-versa, o homem bom, no sentido do homem que atingiu sua plena perfeição ou fim natural como ser humano, é o homem inteligente.

 

Considerações finais:

A hegemonia das ideias de “esquerda” nas Ciências Humanas e Sociais está estreitamente ligada ao predomínio em nossas sociedades de sistemas culturais e orientações axiológicas relativistas, subjetivistas, céticas e utilitárias. O caráter desconstrucionista e o avanço das ideologias diversitárias, em muitas das perspectivas doutrinárias e posturas atualmente em voga nestas ciências, não pode ser dissociado da tendência particularmente dominante nas filosofias modernas de orientação racionalista, naturalista e pragmatista de rechaço pela verdade, e de negação da existência de uma ordem natural e, portanto, da recusa da presença de uma realidade transcendente e de uma moralidade objetiva. O niilismo pós-moderno que parece impregnar parte importante das Ciências Sociais contemporâneas é o resultado final e uma consequência direta do construtivismo racionalista que, em síntese, tem a pretensão de criar e plasmar uma nova realidade e uma nova escala de valores com base em modelos puramente arbitrários e convencionais.

Diante deste cenário, um caminho para a restauração da Filosofia e dos estudos sociais, políticos e culturais é o retorno às fontes clássicas e humanísticas da sabedoria greco-romana e da tradição cristã. E, desta maneira, o restabelecimento de um modelo de educação centrado na busca dos princípios universais da verdade, do bem e da beleza, e no aperfeiçoamento da inteligência, da vontade e da sensibilidade. Educação esta que imprima uma forma no ser humano, e lhe possibilite o crescimento espiritual e a ordenação e harmonia da alma.

 

Referências bibliográficas:

Bauman, Zygmunt e May, Tim. Aprendendo a pensar com a Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

Berger, Peter. Perspectivas Sociológicas: uma visão humanista. Petrópolis: Editoras Vozes, 1972.

Borella, Jean. Des sciences inhumaines. Pensée Catholique, 1981.

Lasa, Carlos Daniel. Por una educación que eduque. Algunas reflexiones en torno al problema educativo actual. In: Lasa, Carlos Daniel (org.); Broggi, Suzana; Dutto, Suzana e Magi, María. Educación y Excelencia Humana. Vigencia de la educación humanista. Villa María: Ediciones del IAPCH, 2007a.

Lasa, Carlos Daniel. La Universidad como fruto del espíritu. In: Lasa, Carlos Daniel (org.); Ottonelo, Pier Paolo; Larrauri, María Isabel e Padrón, Jorge. En Pensar la Universidad. Presente y futuro. Villa María, Ediciones del IAPCH (UNVM), 2007b.

Mattéi, Jean- François. La révolution copernicienne de l’école. Le Figaro, 2003.

Oakeshott, Michael. La voz del aprendizaje liberal. Buenos Aires: Katz, 2009.

Scruton, Roger. The end of the university. First Things: Abril, 2015. Disponível em: https://www.firstthings.com/article/2015/04/the-end-of-the-university . Acesso em: 10/04/2019.

Strauss. Leo. O que é a Filosofia Política? Leviathan- Cadernos de Pesquisa Política, nº 2, pp. 167-193, 2011.

Veach, Henry. O homem racional. Uma intepretação moderna da ética aristotélica. Rio de Janeiro: TopBooks, 2006.

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Cesar Ranquetat

Cesar Ranquetat

Doutor em Antropologia Social (UFRGS). Professor universitário na área de Ciências Humanas

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