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O ataque ao cânone ocidental

Harold Bloom publicou, em 1994, a obra O Cânone Ocidental, um livro de crítica literária, abordando aquilo que seria o mais representativo da literatura ocidental a ponto de formar um “cânone” (do grego κανόνας; em música se refere a certo conjunto de regras, aqui podemos falar em “conjunto de excelência”). No texto vai-se de Shakespeare a Fernando Pessoa como representantes desse cânone.

O livro foi um marco na denúncia ao ataque contra o que de melhor o Ocidente produziu em termos de cultura literária. À época, nas academias europeias e americanas já se atacava frontalmente tal cânone, seja pela via dos modismos desconstrucionistas dos departamentos de literatura, pela via do multiculturalismo nos departamentos de ciência social ou do relativismo nos departamentos de filosofia. Tornou-se lugar comum tratar autores canônicos como perpetuadores da supremacia branca, do cristianismo, da cultura burguesa, da misoginia e do machismo; signos de tudo que o progressismo supostamente se põe a combater.

Segundo todos esses, por um lado, um cânone é impossível, a linguagem não tem qualquer objetividade, portanto uma interpretação universal é impossível, jogando literalmente tudo na mesma vala comum, uma interpretação que coloque Shakespeare como maior literato que a humanidade já viu é tão válida quanto uma que a o considere ininteligível. Antropólogos, assanhados com suas então recentes descobertas, chegaram à brilhante conclusão que todas as culturas são equivalentes, sejam aquelas que produzem Dante, sejam aquelas que praticam o infanticídio. Filósofos já haviam consolidado sua afirmação que a verdade não existe, também impossibilitando uma hierarquia entre bons e maus livros. Por outro lado, as mitologias indígenas e africanas devem ser estudadas por todos nas escolas, cadeiras de “literatura negra”, “literatura feminista” e outras aberrações (aberrações porque boa literatura universal necessariamente incluirá literatura feita por negros, mulheres etc.), a verdade não existe, mas o politicamente correto produziu e produz um moralismo dos mais carolas (“piadas matam”). O cânone entrou na mira da esquerda universitária, estava – e ainda está – sob ataque.

Apesar das fragilidades de todos esses pontos, razoavelmente bem conhecidas (se a linguagem não tem fundamento objetivo, por que e como desconstrucionistas usam a linguagem para se expressar? Se todas as culturas são equivalentes, por que combater o racismo, a supremacia e o democídio? Se a verdade não existe, por que acreditar em qualquer coisa dita pelos que isso afirmam?), é hora de admitir que nós, reacionários, realmente somos (pelo menos às vezes) profetas de causas perdidas – há momentos em que parece só restar a adoração das cinzas. Todas essas coisas continuam em vigor a todo vapor nessas mesmas academias, quando não avançaram para níveis ainda mais aberrantes (uma autora feminista, não contente com os ataques disponíveis, condenou o que de mais elementar há na cognição humana – a lógica, a uma expressão de misoginia ou a “afromatemática”, cadeira criada em uma instituição federal).

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Não se pode furtar a dizer que tudo isso pode ser explicado – para ojeriza dos limpinhos que querem se manter distantes das “teorias da conspiração” da direita olaviana – a partir do conceito de “marxismo cultural”. Marx já dizia que a realidade, quando não é vista pela lente do materialismo dialético, está envolta num véu de ideias falsas chamado “ideologia”. Tudo que não seja marxismo é ideologia e o propósito da ideologia é alienar, principalmente a classe explorada. O cristianismo exalta a pobreza como virtude pois isso amansa o pobre e evita que este se engaje em revolução; a religião do Cristo é um conjunto de ideias, falso à luz do materialismo dialético, que existe com o propósito de enganar (“alienar”, na verborreia marxista).

Transpondo essa lógica para fora de questões econômicas e inserindo-a num contexto cultural, temos a ideia que há um eterno conflito entre homens e mulheres, entre patriarcado e matriarcado e que um cânone formado majoritariamente por autores homens revela esse conflito, que precisa ser sanado por meio da destruição do cânone tal como é conhecido (e não da inserção paulatina de mulheres nele, por exemplo). O mesmo se aplica a autores canônicos heterossexuais versus autores homossexuais, autores canônicos brancos versus autores pertencentes a minorias étnicas – e a sistemática pode ser repetida praticamente ad infinitum. A verdade também é apenas um conceito burguês usada a serviço desse mesmo fim. Idem para os “aparelhos de Estado” (polícia, exército, imprensa, judiciário, democracia – Althusser) e para a própria racionalidade versus insanidade (Foucault). Se tudo isso não for uma peça cultural que replica a conspiração classista do marxismo, não posso dizer o que seria (embora a expressão “marxismo cultural” seja problemática, como o próprio prof. Olavo já pontuou em aula de seu curso).

Disso urge a manutenção do valor do cânone ocidental (menos com uma estética histriônica de alguns “salvadores da civilização ocidental”, espalhados pelas redes sociais e imiscuídos nos meios conservadores) e sua defesa, particularmente, creio eu, a partir da leitura longa e rigorosa dos autores canônicos e, posteriormente, de seus principais intérpretes, podendo contar também com a formação de pequenos grupos de estudos e discussão. Isso deve, preferencialmente, ser feito antes do engajamento em “debates” políticos e rinhas ideológicas.

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André Assi Barreto

André Assi Barreto

Bacharel, licenciado e mestre em filosofia pela Universidade de São Paulo. Licenciado em História. Professor de Filosofia e História das redes pública e privada da cidade de São Paulo. Pesquisador da área de Filosofia (Filosofia Moderna - Dercartes, Hume e Kant - e Filosofia Contemporânea - Eric Voegelin e Hannah Arendt) e aluno do professor Olavo de Carvalho. Trabalha, ainda, com a revisão de textos, assessoria editorial, tradução e palestras. Coautor de “Saul Alinsky e a anatomia do mal” (ed. Armada, 2018).

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