Os porquês da crítica à critica, ou a Terra Média e o ensino fundamental.

Há alguns dias, topei com o texto “Tolkien e a Deformação do Imaginário”, de Paulo Cantarelli, e o que li era tão ruim que acabei postando uns trechos no Facebook, em tom de galhofa. Era o mínimo que eu podia fazer para compensar o tempo que perdi na leitura: proporcionar algumas risadas a mim e a amigos.

Mal sabia eu que o sujeito tinha fãs sem nenhum senso de humor e com menos intimidade com o idioma que ele.

Tudo isto é desculpável, são todos jovens, mas sua ênfase em defender um texto tão fraco me estimulou a comentá-lo com um pouco mais de profundidade. Talvez ajude a algum deles.

Antes dos comentários, três avisos.

Primeiro: isto aqui não é uma “refutação à crítica a Tolkien”, autor de quem nem gosto muito e a quem não conheço em profundidade. Ironicamente, concordo com uma das afirmações de Cantarelli, os filmes são melhores que os livros, ao menos para mim, porque eu nunca arranjo tempo para os últimos. É uma série de comentários que mostra porque a crítica é ruim. Minha crítica não é à crítica, mas à falta de domínio do idioma.

Segundo: grande parte disto foi feito enquanto estava sem internet e não conseguia trabalhar. Mesmo assim, perdi a paciência no fim do item sete ou oito e, para estes comentários, selecionei somente o que era mais fácil de explicar (e, confesso, mais involuntariamente engraçado). Então, este texto encontra-se inacabado e assim permanecerá até o fim dos tempos, se Deus quiser.

Terceiro: na maçaroca desconexa de reclamações aos meus posts, uma delas (embora não seja ao que escrevi sobre o texto) é real. Sim, eu troquei “por que” e “porque” duas vezes, num post-piada sobre a língua árabe. Aliás, fiz a mesma coisa num dos posts relacionados, vocês não precisariam ter vasculhado tanto meu perfil para encontrar uma mancada, era só… ler o que estavam comentando.

Eu sei das regras, obrigado. Sei também que há defesas possíveis para o que escrevi, mas, sinceramente, foi descuido, mesmo. Faço com frequência e não costumo revisar posts em redes sociais. O importante é que este erro não interfere em nada a legibilidade do que escrevi, o que não se pode dizer dos que menciono abaixo.

Então, vamos ao que interessa.

Logo no primeiro parágrafo, ele diz:

Houve a necessidade de, dado o estado das coisas, esclarecer algumas questões confusas na mente do leitor médio acerca do que é arte e quais suas funções. Questões que, em qualquer ambiente intelectualmente saudável, não gerariam grande polêmica nem careceriam de serem explicitadas.”

Bom, as questões que ele gostaria de esclarecer, num ambiente intelectualmente saudável, não gerariam polêmica, nem careceriam de serem explicitadas… mas existiriam. Ou seja, o que ele está dizendo é que vai esclarecer questões que em outras situações mereceriam ficar sem resposta. O ambiente intelectualmente saudável não preveniria seu surgimento, que é o que ele parece querer dizer.

Além disso, o texto não “esclarece questões na mente do leitor médio” de forma nenhuma, ele comenta a obra de Tolkien, rebate afirmações e ressalta pontos que ele julga complicados. Talvez o leitor médio confuso seja ele mesmo, quem sabe.

Um pouco mais abaixo, ele escreve “A prensa de Gutenberg iniciou uma revolução inevitável: os livros se tornaram acessíveis. Os monges copistas não teriam de se preocupar em serem os principais bastiões do saber de toda humanidade, o conhecimento tornara-se facilmente replicável. Em poucas horas poderia se reproduzir centenas de livros prontos para a leitura.

Bom, a revolução não era inevitável, ou não dependeria da “prensa de Gutenberg”.

Não deve ter havido um só monge copista, em toda a história, que tenha se preocupado em ser o “principal bastião do saber de toda a humanidade”; por último, que bom que os livros estavam prontos para a leitura e não para serem comidos ou usados como armas.

No mesmo parágrafo, lemos “Assim a educação se tornou mais resumida e pragmática, raquítica, protética feito os membros postiços dos amputados de guerra.

Protética como membros postiços, que são… próteses. Mas próteses (do tipo mais comum, protéticas, ou talvez de algum tipo mais exótico) não são raquíticas. A imagem é mais confusa ainda porque não se consegue decidir, ao ler, se a educação foi definhando e ficando raquítica (a palavra “pragmática” parece ter sido jogada no meio da frase por soar bem) ou se foi substituída (que é o que a imagem de membros postiços evoca).

Continuando, temos “Os tipos de valores que antes constituíam a alta cultura mudaram, e assim todos os valores que formam os pensadores maiores ― ou artistas maiores ― somem, tornam-se cada vez mais escassos. Restam, no mundo, poucos escritores preocupados com a grande arte ou que realmente a fazem. Na realidade, sempre houve poucos bons escritores e podemos afirmar sem medo que mais de nove décimos do que se produziu na história da literatura possui pouco ou nenhum valor artístico.”

Os valores somem ou tornam-se cada vez mais escassos? Há escritores preocupados com a grande arte mas que não a fazem? Se sempre houve poucos bons escritores, ou seja, se antigamente havia uma pequena elite e agora, com estas mudanças, eles são poucos, qual foi a perda? Estas são questões que um leitor médio pode se fazer e que o autor teria de esclarecer.

Ainda no mesmo parágrafo, “A maior parte do que se encontra hoje, nos prêmios ou no mercado, é absoluto lixo: histórias pré-fabricadas”.

Fico muito feliz que ainda não inventaram livros com histórias pós-fabricadas. O autor deve ter querido dizer que as histórias são repetitivas, que uns escritores as aproveitam uns dos outros, prática aliás terrível e abominável feita por autores modernos como Shakespeare e Cervantes.

O item seguinte, sobre “arte e imaginação”, começa bem imaginativo: “A primeira coisa que dizem quando se fala em J. R. R. Tolkien é: ah, mas ele é grande criador de mundos”.

É imaginativo porque a primeira coisa que se diz quando se fala (argh!) é… um comentário. É um caso inédito de um comentário que não se refere a nada anterior.

A resposta a algo que não foi dito é a introdução de um raciocínio que só pode ser descrito como carnaval lógico.

Ele rebate a afirmação de que “Tolkien foi um grande criador de mundos” com comentários sobre os idiomas que Tolkien inventou. Em seguida, afirma que “Isso é resultado de uma cultura de imbecilização gerada pela “Cultura Pop”: hordas de nerds obesos, que não foram alfabetizados direito, com seus louvores a ficções científicas, distopias, utopias, mundos fictícios duma idade média que em nada se assemelha ao medievo de Dante, ou de heróis fictícios de pura masturbação especulativa

A cultura de imbecilização gerou “isso”… “isso” o quê? Dizerem que ele foi um grande criador de mundos (o que, independente do valor artístico, é verdade)? Ele ter inventado idiomas? Os idiomas não terem valor artístico? Essas invenções serem, “no máximo”, o exercício criativo de um estudioso das línguas, não de um artista? Haver pessoas que se dediquem a aprender estas baboseiras? Ser melhor estudar grego para ler Homero?

Nenhuma das respostas cabe, porque nada disto começou com a cultura pop. Além disso, é notável que ele comece o carnaval com mundos, termine com mundos, mas só discuta idiomas no meio.

Ele não se dá por satisfeito, e prossegue: “Na realidade, vou cada vez menos ao cinema, pois para assistir porcaria, basta ligar a televisão e assistir à “Sessão da Tarde” (é uma perda de tempo menos custosa que ler um livro ruim, talvez por isso filmes ruins façam tanto sucesso). Não é à toa que filmes do calibre de “A Favorita”, de Lanthimos, tenham perdido espaço para obras menores, a exemplo de “Pantera Negra”. Mais do que politização do cinema, há a total falta de senso crítico e estético de quem julga. E no meio desse tiroteio tresloucado, nós, brasileiros, perdemos nossa identidade, não incorporamos mais apenas o mais alto da cultura estrangeira, mas nos deixamos dominar pelo pior do gosto médio.”.

“Mais do que politização do cinema” — algo que não foi abordado em ponto algum — “há a total falta de senso crítico e estético de quem julga” os filmes… onde? Na casa dele, quando ele liga a televisão?

“No meio desse tiroteio tresloucado”: tão tresloucado que aparece no texto gratuitamente, sem conexão com o que veio antes, como uma bala perdida encontrada na sala de estar. Não sabemos quem são os atiradores, em que ou por que estão atirando, nem porque estamos no meio deles. A única palavra anterior que tem alguma relação com “tiroteio” é “calibre”, mas ele a usa para descrever um filme. Será que o tiroteio é entre “A Favorita” e “Pantera Negra”?

Prossigamos. “Mas voltando ao ponto: e a Terra-Média?”. Qual ponto? O dos mundos, que ele menciona, mas não explica? A Terra Média não foi citada em ponto nenhum.

A mesmíssima coisa: Tolkien tornou-se um geógrafo, cartógrafo, lexicógrafo, sociólogo e historiador de um mundo impossível.” A “mesmíssima coisa” que o quê? Ele não disse que Tolkien se tornou geógrafo, etc, de nenhum outro mundo, impossível ou possível. Na mente do autor, idiomas e mundos se confundem, e ele não faz esforço para nos poupar desta confusão.

[…] entregam-se à fantasia tresloucada, à imaginação desvairada, à pura especulação. Quanto mais a obra literária se afasta do eixo do humano, e mais especulativa se torna, pior fica. A fantasia, essa imaginação sem controle, é o objeto das investigações literárias desse tipo de escrita, o humano apenas um fator.” Se a fantasia é a imaginação sem controle, fantasia tresloucada não é imaginação desvairada, mas imaginação tresloucada sem controle… parece que o que está sem controle é outra coisa.

A fantasia […] é o objeto das investigações literárias desse tipo de escrita”. É interessante que isto esteja escrito numa investigação literária desse tipo de escrita, mas não me parece que Cantarelli realmente queria dizer que o que ele está analisando é a fantasia.

Antes de tocar no ponto das descrições e “construção de mundo”, convém lembrar uma carta de Tchekhov ao irmão”… bom, da próxima vez, seria interessante deixar este trecho antes de tocar no ponto das descrições e ‘construção de mundo’, não depois de escrever alguns parágrafos sobre o assunto.

A título de curiosidade, essas regras [as condições que Tchekhov afirma que o irmão deve cumprir para escrever bem] definem, até hoje, a problemática de se escrever ficção científica ou distópica com alta qualidade artística, o que ainda não acredito ter sido feito, à exceção de alguns escritos de Ítalo Calvino.

Regras não “definem problemática”. O que o autor quis dizer é que o cumprimento a estas regras é um problema para quem se propõe a escrever ficção científica com qualidade.

São muitas palavras para se dizer pouco, pura fantasia, nada se vê, realmente ou, quando se vê, essas descrições não possuem caráter psicológico ou metafórico para a narrativa.” Não sei se Tolkien usa muitas palavras para se dizer pouco, mas aqui e em outros trechos parece que o crítico tenta emular o criticado.

A passagem abaixo me deixou abismado.

O que os analfabetos literários chamam de “autor externo”, neste caso, não é nada mais que o velho narrador onisciente clássico, que já deveria estar mortinho desde a publicação de Madame Bovary, em 1856. Para quem supostamente segue alguma tradição, Tolkien está bem atrasado.

O narrador onisciente deveria estar “mortinho” desde a publicação de Madame Bovary por quê? Ele não funciona mais desde Flaubert? Se Tolkien segue, “supostamente”, alguma tradição, ele deveria… abandoná-la e deixar de ser “atrasado”? Mais um bloco resolveu desfilar no carnaval lógico.

Além disso, o narrador, em obras ficcionais, nunca é o autor. Pode ser no máximo um alter ego, mas nunca é o autor, ao contrário do que acontece em textos não ficcionais. Em literatura, o narrador é sempre uma das personagens do livro, e talvez a mais importante”. Para alguém que reclama de usar muitas palavras para se dizer pouco, talvez fosse melhor não se repetir tanto.

Chegamos, enfim, ao começo… e ao que vem antes.

Tudo bem que, como há de se constar, o prólogo era um recurso estilístico usado na Idade Média ― até mesmo na antiguidade o narrador de Odisseia canta brevemente às musas ― porém isso era mais costume que uma técnica real. A exemplo de “Tirant Lo Blanc” e “Dom Quixote”, ou mesmo outras novelas de cavalaria, o autor costumava endereçar um breve prólogo ao leitor para explicar a narrativa. Em geral isso é ruim, além de desnecessário ― aqui não estou sendo anacrônico, pois é preciso ter algum senso crítico mesmo lendo os clássicos, para incorrer em seus acertos, não nos erros; ao menos se você for um artista. Poucos se lembram do prólogo do Quixote, mas certamente todo leitor se lembra do início derradeiro: “En un lugar de la Mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme”.

Bom, se o crítico não lembra do prólogo de Dom Quixote, a culpa não é exatamente de Tolkien, mas é triste ler uma coisa assim, porque, entre os trechos mais conhecidos da literatura portuguesa, estão as primeiras estrofes d’os Lusíadas, que são, afinal das contas, um prólogo (a ação começa, se não me engano, na décima-nona estrofe).

Além disso, o trecho do “recurso que era mais costume que técnica”, como o leitor já deve ter percebido, não faz sentido. Técnicas podem ser costumeiras ou não, seu oposto não é “costumes”.

E “início derradeiro” quer dizer que o prólogo era um início antes do início e que não houve outro início depois do início?

Para entendermos o trecho seguinte, preciso citar o pedaço de um romance de Ítalo Calvino a que ele se refere. Primeiro, Calvino:

Sob as muralhas vermelhas de Paris perfilava-se o exército da França. Carlos Magno ia passar em revista os paladinos. Encontravam-se ali havia mais de três horas; fazia calor, era uma tarde de começo de verão, meio encoberta, nebulosa; quem usava armadura fervia como se estivesse em panelas em fogo baixo. É provável que, naquela fila imóvel, de cavaleiros, alguém já houvesse perdido os sentidos ou cochilasse, mas a armadura os mantinha empertigados na sela de modo uniforme. De repente, três agudos de corneta: as plumas dos penachos agitaram-se pelo ar parado como depois de uma rajada de vento, e logo silenciou aquela espécie de rumor do mar que se ouvira até então, e era, deu para sentir, um ressoar das gargantas metálicas dos elmos. Finalmente, vislumbraram-no avançando lá do fundo, Carlos Magno, num cavalo que parecia maior que o natural, com a barba no peito, mãos no arção da sela. Reina e guerreia, guerreia e reina, faz e desfaz, parecia um tanto envelhecido desde a última vez que aqueles guerreiros o tinham visto

Agora, o calvário:

Todo o cenário humano nos remete ao calor, à preguiça, as imagens colaboram para o sentimento estético do texto, podemos ouvir o murmúrio dos elmos, que parecem com o do mar, e cozinhamos brandamente com os cavaleiros em suas armaduras

Sim, nos remete talvez porque a primeira coisa que o autor tenha dito depois de nos dar “onde”, “quem” e “quando” foi que… estava calor, era uma tarde de verão, e quem estava de armadura fervia como se estivesse em panelas em fogo baixo. Se não fosse o crítico, jamais se perceberia que a sequência “calor”, “verão”, “fervia” e “fogo” sugere calor.

E, não, nada ali sugere preguiça, mas cansaço.

Continuemos para um trecho mais explicitamente pueril. O crítico se pergunta “Então por que diabos começamos com essa mania de literatura infantil, ou infanto-juvenil?”, o que, se fosse uma pergunta sincera seria boa. Mas não é o caso; só me resta comentar que “começamos”, seja lá por que motivo, a contar histórias infantis desde que começamos a contar histórias, não é uma invenção ou mania recente (como o próprio escrevente reconhece, linhas abaixo, mencionando contos de fadas).

O que parece que ele quer fazer é uma crítica ao nível da literatura infantil. Feito por um adulto, seria interessante. Mas um adulto talvez percebesse que discutir isto não ajuda no que ele quer mostrar, que é: dizer que Tolkien escrevia para crianças não nos dá o direito de relevar o fato de ele escrever mal.

Sigamos. Agora, vem um dos trechos que comentei no Facebook. Vou reproduzi-lo e meu post em seguida (com modificações mínimas):

Ler literatura não faz bem. Faz mal. É tão tóxica, e embriaga tanto quanto absinto, que nos faz vomitar as entranhas de nossa própria alma na busca de sentido.

“Me pediram para explicar por que o trecho da “crítica” ao Tolkien era ruim.

Em primeiro lugar, por causa de “ler”, perfeitamente dispensável, na primeira frase (porque “literatura” foi feita para ler), ele estraga a terceira (porque “ler literatura” é o sujeito da primeira, o sujeito oculto da segunda, e a terceira começa com “é tão tóxicA”).

A inserção de “embriaga tanto quanto absinto” engasga o texto (“é tão tóxica, e embriaga”), sem acrescentar nada importante (ele já disse que literatura era “tóxica”, o que justificaria o “vomitar”; ele não usa a embriaguez para nada no que diz depois).

Vamos à imagem em si. A literatura é tão tóxica que nos faz vomitar as entranhas de nossa alma… Na busca do sentido? Em quê? Nas tripas anímicas vomitadas? Como a imagem de vomitar (“as entranhas da alma” é uma imagem batida, vomitar as entranhas quer dizer vomitar muito) sugere de alguma forma entender o que esteja escrito? Se literatura é digestão, vomitar até as entranhas é… não reter nada.”

Pulando expressões maravilhosas como “imagens sem imagens” e originais como “profundezas abissais”, saltando por trocadilhos geniais como “Shittycraft” (para se referir a Lovecraft) e evitando comentar a confusão de imagens infernais, vamos ao trecho — que também comentei no Facebook — em que ele tenta demonstrar que Tolkien não “sabe nem mesmo o básico do estilo em língua inglesa, pois escreve frases que constantemente nos deixam perdidos no texto” (mais um exemplo excelente, embora involuntário, de “muitas palavras para se dizer pouco”).

“Haldir conduziu Frodo”, tudo certo. “E o senhor deu-lhe boas-vindas”. Deu boas vindas a quem? Haldir ou Frodo? Podemos entender pelo contexto que é Frodo, mas “o Senhor deu-lhe boas-vindas em sua própria língua”? Ele deu um beijo na boca do convidado, por acaso? Não é à toa que surgiu um clima pesado e a “Senhora Galadriel não disse uma palavra, mas ficou observando longamente seu rosto [seu de quem?]”

Bom, em primeiro lugar, se “podemos entender pelo contexto que é Frodo”, não há ambiguidade alguma.

Em segundo lugar, “em sua própria língua” quer dizer “em seu próprio idioma”. É, parece que estou me repetindo, mas o crítico parece nunca ter ouvido a palavra “língua” com este sentido. Espero que ele não tente agarrar professores de línguas na rua, eles não ensinam o que ele parece achar que ensinam.

Bom, a Senhora Galadriel ficou observando o rosto de quem foi conduzido por Haldir, a mesma pessoa que foi recepcionada pelo Senhor em seu próprio idioma. Arriscaria dizer que o crítico deve ser o único leitor que teve dificuldades em entender este parágrafo na história toda, mas minha experiência no Facebook me mostrou que posso estar errado.

Mais uma imagem curiosa brota no texto, mas não da forma como se esperaria que surgisse: “ O pior é que literalmente podemos abrir o livro em qualquer página que os erros brotam feito tubérculos. Não é preciso esforço nenhum para encontrá-los, vejamos um trecho do capítulo V”.

Para quem não se espantou, eis a definição de tubérculo do Aulete Digital:

1. Bot. Caule freq. subterrâneo, alongado ou arredondado, de grande valor nutritivo, que apresenta escamas e gemas que podem gerar novas plantas, como, p. ex., a batata. [Os tubérculos desenvolvem-se nas raízes, nos rizomas ou nos ramos subterrâneos de certas plantas.]

2. Bot. Excrescência na superfície de um órgão vegetal.

3. Anat. Qualquer protuberância na superfície de um osso ou em qualquer parte do organismo.

4. Med. Nódulo que se forma nas camadas mais profundas da derme ou em outro tecido.

5. Med. Pequeno tumor que se forma nos tecidos, causado pela infecção do agente da tuberculose.”

Talvez ele tenha querido dizer que os erros de Tolkien são raros, escondidos, crescem devagar (e talvez tenham valor nutritivo?)… mas que não é preciso esforço algum para encontrá-los, o que deve fazer a alegria de botânicos, médicos e cultivadores de batatas no mundo todo.

Vamos, então, ao trecho que sucede esta imagem tuberculosa e aos comentários do crítico (e aos meus):

Tolkien: “A multidão de orcs se abriu, e se amontoou do lado, como se eles próprios estivessem com medo. Alguma coisa vinha atrás. Não se podia ver o que fosse: era como uma grande sombra, no meio da qual havia uma forma escura , talvez humanóide, mas maior; poder e terror pareciam estar nela e ao seu redor.”

Cantarelli: “Notamos a imprecisão do escritor logo de início. Por que “como se eles próprios estivessem com medo”? Não adianta dizer que é a perspectiva dos protagonistas, o suspense será quebrado na oração seguinte em “alguma coisa vinha atrás”. Então uma frase precisa pediria por “estavam com medo”.”

Talvez porque eles não estivessem com medo, porque a figura que surge seja aliada deles, mas seu movimento fosse similar ao de uma multidão com medo?

A seguir, o narrador diz que não se via o que era que vinha, mas que era como uma grande sombra com [sic] uma forma escura no meio. Não preciso nem comentar sobre pleonasmos e redundâncias, não é mesmo? A descrição brilha feito ouro dos tolos e, igualmente, não tem valor literário nenhum.”

Não precisa, porque não é uma redundância nem um pleonasmo. Como qualquer criança que não seja cega poderia ter lhe informado, sombras têm variados graus de escuridão. O que Tolkien disse, bem ou mal, pouco importa para mim, é que havia algo mais escuro no meio da sombra.

Parece apresentar algo, porém logo vemos que o autor disse, disse, disse e não falou nada. Palavrório desgraçado. E ainda, mesmo não podendo ver nada, conseguia-se ver que a sombra talvez fosse um humanoide e “poder e terror pareciam estar nela e ao seu redor”, seja lá o que isso signifique. ”

O crítico talvez não saiba o significado de “talvez”. O sentido é claro, era uma sombra com algo mais escuro no meio, que não se podia distinguir, mas que parecia humanoide, só que maior que um humano comum.

Dói um pouco ter que dizer isto, mas “poder e terror” não são coisas que se vêem. E eu sei cá o que isto significa: que a sensação que o ser que estava avançando passava era que ele era poderoso e terrível. Ler não é tão difícil, quando se tenta.

Mais um trecho comentado, com mais comentários aos comentários:

Tolkien: “A figura veio para a extremidade do fogo e a luz se apagou, como se uma nuvem tivesse coberto tudo. Então, com um movimento rápido, pulou por sobre a fissura. As chamas bramiram para saudá-la, e se ergueram à sua volta; uma nuvem negra rodopiou subindo no ar. A cabeleira esvoaçante se incendiou, fulgurando. Na mão direita carregava uma espada como uma língua de fogo cortante; na mão esquerda trazia um chicote de muitas correias.

Cantarelli: “Mais uma descrição que parece que dará em algo, mas não mostra nada. A precisão se perde com a quantidade de símiles, tantas em tão poucas linhas. O uso do símile não é proibido, apenas advirto contra o excesso. Além do mais, mais adiante o narrador dirá que havia literalmente uma nuvem negra ali, então a símile não se faz necessária.

Existe um conceito, que talvez não seja íntimo do crítico, mas que é importante para leitores e seres humanos em geral, chamado de “tempo”. Primeiro, a luz se apagou, como se uma nuvem tivesse coberto tudo. Depois que a coisa pulou sobre a fissura e as chamas se elevaram, uma nuvem negra — vinda das chamas — subiu. Além de serem coisas que se deram em momentos diferentes, são coisas diferentes. O humanoide sombrio chegou perto do fogo, e a luz do ambiente diminuiu. Depois, ele pulou pelo fogo, e saiu uma nuvem preta das chamas.

De qualquer forma, fico feliz que ele não proíba o símile e já anotei a permissão para futura referência.

O “com um movimento rápido, pulou sobre a fissura” poderia ser simplesmente “pulou sobre a fissura”

Claro que poderia. Poderia ser também “pulou rapidamente, alegremente, dançando a Macarena, sobre a fissura”. Ou “pulou lentamente sobre a fissura”. Ou ainda “pulou numa velocidade regular, com movimentos até meio chatos, sobre a fissura”. O que importa é o que o escritor queria passar. É claro que o pulo (o percurso no ar em si) nunca é lento, mas, para qualquer pessoa alfabetizada (uma categoria de gente aparentemente cara a Cantarelli — o texto não deixa muito claro o porquê), Tolkien está descrevendo como foram os movimentos que levaram ao salto. Se alguém diz “fulano pulou lentamente do penhasco”, ninguém imagina que a gravidade subitamente mudou.

Os espertinhos de plantão não venham me dizer que são erros de traduções, pois se dá o mesmo em inglês.”

Ficaria mais fácil se a pessoa, quando se dispusesse a demonstrar que um autor não sabe escrever em inglês, postasse o trecho em inglês, mas não se preocupe, a última coisa que me passaria pela cabeça é que são erros de tradução.

“A figura chegou à extremidade do fogo e pulou sobre a fissura, a luz se apagou e uma nuvem negra cobriu tudo, as chamas se ergueram para saudá-la”. Ainda não seria o ideal, mas manter alguma linearidade nas ações do sujeito da oração dá mais clareza à frase

Mudar a ordem dos acontecimentos cria uma nova frase, disto não há dúvidas.

Pulando as pinimbas geográficas, por pura falta de tempo, temos mais — as últimas — pérolas.

E quantas vezes é preciso repetir palavras? Quantas vezes já lemos imagens que se repetem sem necessidade? Essas repetições desnecessárias são feias.

Horríveis, eu diria. Mas não precisa ficar dando estes exemplos tão explícitos.

Em inglês, algumas delas são suprimidas, outras não, mas são poucas.”

Pode parecer inacreditável o que vou dizer, mas o que aconteceu foi o contrário: a tradução ao português só foi feita depois que Tolkien escreveu o original em inglês, e ele não teria como suprimir nada retroativamente, sempre haveria as edições anteriores.

Bom, é isso.

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